sexta-feira, 17 de abril de 2015

A CRISE DO MUNDO MODERNO

A crise que afeta o mundo moderno e contemporâneo é crise de fundamento, de um fundamento absoluto da verdade e dos valores humanos; “ruptura” entre Deus e o homem. A sociedade hodierna, excetuando núcleos isolados, encontra-se “desintegrada”, é uma sociedade de homens intelectual e moralmente desintegrados: falta-lhe a unidade fundamental. Esta falta é também advertida pelos responsáveis por tal desintegração. Daqui a reconhecida necessidade do absoluto, que o pensamento moderno, a começar no século XVI, pensou poder dispensar ou substituir, absolutizando os valores humanos válidos como tais, sempre necessitados de se fundarem sobre o absoluto, ou de o testemunharem. Mas este absoluto constitui o objeto próprio da metafísica; então, o mundo moderno julgou que podia dispensá-la. Àquilo que a filosofia chama absoluto, com mais gravidade e sem possibilidade de equívocos, a teologia chama Deus; ainda uma vez a ilusão do pensamento laicista se revela com o julgar poder prescindir de Deus. Perdido Deus, perdeu-se o homem, o fundamento do homem e o seu fim supremo. Sem Deus, a vida humana despedaça-se e dispersa-se, desintegra-se. A carência de absoluto, hoje, é carência de Deus, após a queda de tantos e tantos mitos.


Michele Federico SCIACCA.  A hora de Cristo, Lisboa-São Paulo: Aster-Flamboyant, 1959, p. 49. 

terça-feira, 14 de abril de 2015

RECONQUISTAR! COMO?

Artigo “¡Reconquistar! ¿Cómo?”, do R.P. Xavier BEAUVAIS, divulgado na Revista Iesus Christus nº 78 do Distrito da América do Sul da Fraternidade Sacerdotal São Pio X [e publicado no Brasil pelo MJCB – Movimento da Juventude Católica do Brasil].
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Porque “o zelo para a reconquista é primeiro uma obra sobrenatural, temos que apoiar-nos primeiro sobre os meios sobrenaturais” (1), estes mesmos que forjam toda vida cristã, vida que não é outra que uma ascensão permanente e ininterrupta à santidade, pois o essencial é a visão de Deus, o desenvolvimento pleno da graça santificante.
A reconquista passa então pelos meios ordinários dispostos pela Providência, principalmente a vida sacramental.
A reconquista passa pela prática dos mandamentos de Deus: ou seja, “ver tudo e fazer tudo sob esse ângulo, sob o ângulo das virtudes, o que nos trará um impulso novo, uma perfeição nova: a virtude de justiça para Deus, pelo serviço de Deus e da Igreja, pela adoração, o sacrifício; na temperança, a humildade, a fortaleza, tudo isto coroado pelas virtudes teologais” (2).
Se queremos reconstruir a cristandade, devemos absolutamente voltar a encontrar esse fervor, essa santidade que foi a origem de dita cristandade.
A Cristandade é merecida quando os cristãos combatem. Levemos então esta vida cristã profunda com tudo o que isso implica – de orações, de virtudes e de sacrifícios – para permanecer fiéis.
A crise da Igreja não admite outro remédio que a santidade dos fiéis. Temos que fazer de nossos corações templos sustentados por quatro colunas: a fé, os sacramentos, a oração, os mandamentos. Templos onde deve reinar a Virgem Maria.
Nosso combate pede todas as forças sobrenaturais que são necessárias para lutar contra aquele que quer destruir-nos.
Devemos ser conscientes deste combate dramático, apocalíptico, no qual vivemos, e não minimizá-lo.
“O que é um tradicionalista?”, perguntava Dom Lefebvre em um sermão que pronunciou em São Nicolas do Chardonnet, em Paris, no ano de 1987:
“É aquele que crê, que tem a fé e que quer que esta fé seja íntegra. Também é aquele que se esforça com todo o seu coração, com toda a sua alma, por observar a Lei de Deus e os preceitos do Evangelho para ser conformes à vontade de Deus”.
“Se esforça então por evitar o pecado, que considera como o mal de sua alma. Mas sabe que é débil, que tem necessidade de todos os socorros que o Bom Deus transmitiu por intermédio de sua Igreja: os sacramentos, e em particular o Santo Sacrifício da Missa e a devoção à Santíssima Virgem”.
“Mudar os homens seria uma obra muito decepcionante se não fosse acompanhada primeiro com um trabalho essencial no fundo de nossas almas”(3). O essencial de nossa vida cristã permanecerá sempre no amor de Deus, e esse amor deve ser tudo para nosso coração, será a luz de nossa inteligência.
Trata-se de amar a Deus acima de tudo, simplesmente, e este amor é terrivelmente exigente.
Quando se descuida da verdade evangélica, quando se abandona a virtude e a vida cristã à qual o Divino Redentor chama todos os homens; então, tudo cai por terra, tudo vacila, e cedo ou tarde tudo perece miseravelmente.
batismo nos alistou em uma milícia: a milícia de Jesus Cristo.
crisma nos deu as armas necessárias para o combate.
confissão reparará nossas almas ao mesmo tempo que nos dará ”fortaleza e vigilância para discernir as tentações e combatê-las”(4).
Reconquistar nossas almas pela confissão!
“Os pecados que chamamos leves, não os tenha por inofensivos, diz Santo Agostinho; se os tem por inofensivos quando os pesa, treme quando os conta. Qual é nossa esperança? Primeiro a confissão, depois, a dileção”.
Uma boa confissão é uma vida nova que começa.
Confessar-se é esvaziar seu coração de todo outro amor que não seja o de Deus.
Tenham em suas consciências a inquietude de Deus. Vejam esses corações, sujos com torpezas, atos sórdidos, faltas leprosas que deixam boiar no olhar luzes que não enganam.
As quedas finais, as que liquidaram tudo: a decência, o pudor, o respeito por si mesmo, por seu corpo, por sua palavra, e Deus com todo o resto, não são mais que o resultado de centenas de pequenas renúncias prévias.
“Carregados com paixões, com debilidades e com faltas, um se cansa, outro cede, e se diz que não chegará nunca a tirar de cima esse odor de barro e de pecado que nos acompanha”(5).
Como? Não renunciaremos! Que maior misericórdia que o sacramento da penitência!
“Em cada queda nos levantaremos”, e de joelhos, diante de Jesus Cristo na pessoa do sacerdote, nosso pai, confessaremos humildemente nossas faltas, ”decididos” com a força desse sacramento ”a ser tão mais vigilantes quanto mais débeis nos sintamos”(6).
comunhão nos fará avançar porque fortalece. Se não são fortes, de quem é a culpa? Os senhores dispõem de toda a força que da tal sacramento já que lhes da Aquele mesmo que é a Fortaleza.
O grande meio de entrar no caminho da perfeição, da santidade é entregar-se a Deus.
Nosso Senhor anda conosco, nos nutre desse sacramento graças ao sacerdotes da Fraternidade São Pio X e os poucos outros, fiéis à Tradição, conservando e aumentando em nós a vida da graça, pois toda alma cristã deve crescer.
Esta santidade extrai-se de sua fonte, da Missa católica, a Missa tridentina, pois somente ela é certamente missionária, apostólica, tão somente ela contém tudo o que pode fazer voltar Deus às almas, e ninguém estranhará ao ver florescer esplêndidas vocações sacerdotais e religiosas nos lares ardentes onde o pai e a mãe acodem a extrair da Missa e da comunhão diária ou quase diária as forças necessárias para renovar seu fervor e sua generosidade.
É dessa Missa que extrairão as graças de fidelidade, de conversão e de salvação. Tenham fé nas graças da Missa. Que espetáculo miserável se dá na maioria de nossos Priorados ao ver a Missa diária inclusive às vezes sem nenhum fiel.
Que a oração tenha seu lugar capital na reconquista. Antes da ação, a oração; durante a ação, a oração, e depois da ação também a oração, pois nossa ação deve proceder de um coração transformado no coração de Jesus Cristo e de Maria. É inútil sonhar com uma elite sem a oração. Toda ação, ainda que política, deve ser o fruto de nossa vida interior; senão, está destinada ao fracasso, tal como comprovamos na política há séculos.
Armemo-nos de nosso terço como de um estilingue, assim como recomendava São Luís Maria a seus missionários:

“arderemos como fogos
lutaremos como cachorros.
Esclareceremos as trevas como verdadeiros sóis,
esmagaremos em todo lugar onde formos
a cabeça da serpente”.
Mais uma vez, não se formam elites sem a oração; dela extraímos nossa convicção de católicos.
Aqueles que conheceram a guerra – dizia Dom Lefebvre – recordar-se-ão de que a gente se punha a rezar quando as bombas começavam a cair. Neste momento, hoje, caem outras bombas, e quantos dos nossos vacilam e morrem sob estas bombas!
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Como reconquistar?
Pela defesa da Verdade
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Isto é ser confessor da fé. É impossível calar-nos, debilitar a Lei de Deus para adaptá-la ao gosto das vontades humanas.
Se queremos defender a verdade, comecemos por localizar-nos na verdade e na humildade.
Um católico orgulhoso de sua fé não pode aceitar a condição de cachorro mudo, pois um cachorro que não late perdeu sua função própria.
Como afirmava Gustavo Corção, “saibamos latir e saibamos também morder. Tenhamos esse bom olfato para sentir de longe o lobo e o leão que rodeiam o seio da Igreja, buscando a quem devorar.
“Tratemos de farejar de longe o mal hálito dos mercenários que dialogam com o lobo, enquanto este devora tranquilamente as ovelhas.
“Tenhamos o mesmo bom ouvido do cachorro do gramofone, cuja alegria reside no reconhecimento da voz de seu mestre”.
Aos verdadeiros cristãos, aos filhos da luz lhes corresponde reagir contra o  liberalismo, submetendo à verdade a inteligência e todos os atos de nossa vida privada e pública.
Mas se guardamos a Verdade, se rejeitamos as ideologias modernas, é para mantermo-nos em uma passividade farisaica?
As almas morrem de fome e de sede. Cabe a nós fazê-las conhecer a Verdade religiosa que por si só pode satisfazer as almas, mas primeiro devemos conhecê-la nós mesmos.
Na Tradição Católica há uma só doutrina, um pensamento capaz de esclarecer todos os campos da inteligência e do pensamento, capaz de dar-lhes a verdadeira liberdade aos homens, a da vida interior.
Convém que formemo-nos urgentemente na doutrina contra-revolucionária ao invés de resmungar esterilmente contra um mundo que já não anda mais.
Mais uma vez, são sejamos cachorros mudos.
Atrever-se a proclamar a Verdade, atrever-se a proclamar o reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo, isto soa mal diante dos ouvidos do mundo laico, do mundo eclesiástico de hoje. Não é, como se diz: “politicamente correto”; vamos passar por atrasados, surdos, sujos… o que nos importa?
Temos que ganhar os corações por meio da chama da caridade, sim, mas sem esquecermos de esclarecer as inteligências com a luz da verdade.
Há que dizer a verdade com amor, tal como nos é dita. Sim, mas falar com amor não quer dizer falar sem força. O Amor é uma força diante da qual nenhuma força pode resistir: a tudo vence, tudo o atrai.
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Como reconquistar?
Por nosso zelo
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Nosso ardor missionário, “nosso zelo pela reconquista descansa sobre três coisas que encontramos nos grandes apóstolos” (7):
– O zelo pela glória de Deus, ou o que é o mesmo, “buscar a glória de Deus em todas as coisas, ou seja, viver na humildade” (8).
Deus faz tudo para sua glória.
Quanto a nós, devemos trabalhar para sua glória, e não para nossa pequena pessoa. Quem somos? pequenos instrumentos nas mãos de Deus!
– O zelo pela nossa santificação. “O amor de Deus deve ser a alma de nossa vida cristã, o motor de nosso zelo” (9).
Como já dissemos, este zelo é nutrido com a oração, é cultivado por meio dos sacramentos, e a condição para que dê frutos é permanecer unidos a Deus, pois senão, cairemos na esterilidade.
– O zelo pelo dever de estado. “O que vêem os homens são os frutos que derivam de nossa vida interior: uma vida familiar edificante, uma vida profissional virtuosa (…) A retidão de vida deixará sempre um testemunho”(10).
Deus é quem anima nosso zelo, quando nos diz:
“Tenham confiança, Eu venci o mundo”.
Com tudo isto, nosso zelo apostólico dará frutos.
Comprometamo-nos no apostolado com o coração ardente de amor a Deus, sem medir nossas penas.
Que nosso exemplo sem orgulho disfarçado e sem falsa modéstia, brilhe diante dos olhos dos homens; assim atrairemos mais facilmente os corações a nós mesmos, para assim ganhá-los para Nosso Senhor Jesus Cristo, pois trata-se disto: ganhar as almas tristemente sentadas na sombra da morte.
A opinião aburguesada dos católicos bem instalados não nos interessa; o que nos importa é o bem da família, de nossa Igreja que é a salvação de todos, daqueles que merecem e desmerecem, daqueles que querem e daqueles que não querem se salvar.
Basta com aqueles que veem nossa Igreja se perder e nossa pátria sem encontrar mais remédios que falar sobre a necessidade de remediar tal situação. Atuemos! Senão, vamos cair em uma espécie de romanticismo que alguém definia como um suicídio cotidiano diante de um espelho.
“Quando desaparecem os santos, aparecem os afeminados. Quando desaparecem as conquistas, chegam as contas da administração. Quando desaparecem os guerreiros, aparecem os políticos. Quando desaparecem os fundadores, aparecem os preceptores” (11).
Então, a reconquista por meio do apostolado é para reaprender a conhecer Jesus Cristo, a quem tudo devemos.
A todos aqueles que perderam seu caminho, a todos aqueles que erram, que morrem, saibamos nutri-los de Jesus Cristo, de nossa doutrina.
Temos uma missão: reconquistar as almas, arrancando-as do pecado. Ganhem-nas! Mas para isto, preserve-se das armadilhas que o demônio e o mundo não cessarão de pôr sob nossos passos.
Missão grandiosa!
Há um grande erro em querer opor a santificação pessoal à obra do apostolado da salvação das almas. São duas atividades complementares, tão unidas, que me atrevo a dizer que não se pode progredir em uma sem fazer a outra.
“Aquele que não tem zelo não ama”, dizia Santo Agostinho. De fato, o amor é conquistador. É porque ama Deus acima de tudo que o sacerdote tem uma alma de conquistador, e a um nível inferior, mas real, todos aqueles que contraíram matrimonio sabem quão conquistador é o amor.

“Se a verdade que possuem permanecesse neles como um objeto de contemplação em vista de uma alegria espiritual, não serviria para a causa da paz. A verdade deve ser vivida, comunicada, aplicada em todos os campos da vida” (12).

Que nossa reconquista reflita a de Deus, que seja tão esclarecedora e vivificante, como generosa e amante.

“A Igreja é militante, e então é uma luta contínua. Esta luta faz do mundo um verdadeiro campo de batalha e de todo cristão um soldado valente que combate sob o estandarte da cruz; com uma mão repele o inimigo, com a outra eleva as paredes do templo e trabalha em santificar-se” (13).

Não existe um sem o outro.
Deem uma mostra de tenacidade no prosseguimento deste ideal: ganhar os homens para Deus.
Sejam testemunhas de Jesus Cristo em todos os seus atos.
Um soldado não deve ter medo de se cansar por seu chefe. Sem espírito missionário um homem se amorna, se rebaixa e o espírito do mundo nos invade.
Evangelizar é gritar por Jesus Cristo em meio do alvoroço carnavalesco onde cada um faz publicidade e vende sua lamentável mercadoria no grande circo ecumênico de hoje.
Fortes na sua vida interior, poderão e deverão ser essa elite que dá o exemplo, que atrai as massas, uma elite intelectual e espiritual.
Finalmente, não há reconquista possível sem vocações.
Às centenas deveriam se levantar os varões e as mulheres para entrar no serviço exclusivo de Nosso Senhor.
Há uma grande tarefa mais urgente, mais elevada que as mais formosas profissões, há uma vida mais profunda que transmitir que aquela que transmitem os esposos católicos.
Mas não há segredos, afirmava Dom Marcel Lefebvre:

“Em nossas escolas católicas é onde encontraremos os futuros sacerdotes católicos. É claro. E como consequência, em suas famílias católicas com numerosos filhos, ali nascerão as vocações e as futuras famílias cristãs.”

É impossível pensar em uma restauração da sociedade cristã sem a transmissão da sabedoria cristã, sem a formação do espírito e do coração das crianças, que é a razão essencial das escolas que começam a nascer no Distrito (La Reja – Viña del Mar – Anisacate, com as Irmãs Dominicanas).
Há alguma milícia que possa aceitar uma alma batizada mais formosa que a milícia sacerdotal?

“Que se volte ao espírito de vitória, de sacrifício, de união com Nosso Senhor Jesus Cristo no altar, e as vocações florescerão de novo, tornar-se-ão numerosas”, concluía Dom Lefebvre.
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Padre Xavier Beauvais
Antigo superior do Distrito da América do Sul
[e atual diretor espiritual do grupo francês de leigos Civitas]
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(1) R.P. Alain Delagneau, na publicação ”Marchons Droit”.
(2) R.P. François Pivert, no boletim ”Le combat de la foi”.
(3) León Degrelle, de seu livro ”Almas ardendo”.
(4) R.P. Alain Delagneau, op. cit.
(5) León Degrelle, op. cit.
(6) León Degrelle, op. cit.
(7) R.P. Alain Delagneau, op. cit.
(8) R.P. Alain Delagneau, op. cit.
(9) R.P. Alain Delagneau, op. cit.
(10) R.P. Alain Delagneau, op. cit.
(11) Ignacio Braulio Anzoátegui.
(12) Sua Santidade Pio XII.

(13) Sua Santidade Pio XI.

domingo, 12 de abril de 2015

A REVOLUÇÃO

“A revolução é o apetite e a avidez do estômago vazio, que só se sacia quando destrói e cuja única realidade é a fome (…)”

“A existência da revolução está fundada sobre os não-revolucionários. Sem dúvida, encontram-se entre os iludidos os entusiastas do “mundo melhor” – pessoas cândidas e hipnotizadas, cujos corações a revolução mantém cativos; serão eles os primeiros devorados. Além desses, há o exército incontável dos aterrorizados e exterminados. Contudo, a verdadeira vitalidade da revolução não está nas deportações e nos massacres, mas nos acordos bilaterais de paz que seus inimigos professos assinam com ela. (...) Mais e mais, a revolução prefere rastejar diante dos inimigos a esmagá-los.”

“A paz é miragem que significa “extermínio adiado, mas a caminho”; seus oponentes são considerados como semeadores da discórdia e obstáculos à paz. A paz revolucionária é sempre o prenúncio da guerra – grande ou pequena –, sem a qual é impossível a revolução viver, pois toda síntese nasce da guerra e está prenhe de outra.”
  
I.       Que é a revolução?
 — A revolução é a revolta constituída em princípio e direito; em aparência, está contra a atual ordem social, mas em verdade é contra a ordem natural e sobrenatural que Deus criador e redentor estabeleceu. Essa revolta não a chama o homem de pecado ou desordem, mas direito do homem contra Deus e correção da injustiça de Deus no mundo. Para conhecer a justiça, o mundo não precisa de Deus; para tanto, basta o homem revoltado.

II.      Qual a ordem que a revolução deseja estabelecer?
— A revolução não quer estabelecer nada, mas arrasar aquilo que é: a destruição é sua tarefa essencial.
Como o real é, a revolução só acabará quando aniquilar o real.

 III.   A revolução tem a intenção declarada de aniquilar o real?
— Não, a revolução apregoa uma nova ordem; todavia, não obstante a perfeição da ordem futura, a revolução não afiança sua perenidade. O ímpeto da revolução está no devir, e não no ser.
Ela acusa o ser de ser; celebra o devir como contrário ao ser e indefinidamente transformável.

IV.    Esse é o erro fundamental da revolução?
— Não se pode chamar o fundamento da revolução de erro, mas de negação do real/negação do ser. Ela é “o esgoto de todas as heresias” (São Pio X). A afirmação do ser – Deus é, eu sou – é o conteúdo essencial da razão; segue-se daí que a revolução, ao adorar o devir, nega a própria constituição do espírito.

V.      Em si mesma, a revolução não possui nada de real?
— Com efeito é ela como o mal – ela é o mal –, e sua única realidade é a malícia espiritual que, com o fito de destruir o ser real, existe graças ao ser que deseja destruir.

É evidente que a revolta contra Deus e o desejo do nada fundamentam a própria existência e a “ausência de Deus” em Deus só, pois a única realidade que existe é aquela que é objeto de ódio – Deus e tudo o mais que vem Dele, i. e., a criação e a civilização, que são o resultado a ação racional e religiosa do homem unido a Deus.

É lícito chamar a revolução de “inveja de Deus”.

VI.    A revolução é insensata?
— Ela é tão absurda quanto a negação do ser; admite ela a absurdidade e a contradição evidente da progressão de sua instauração; é o que chamam de dialética.

VII.   Qual a conseqüência da admissão desse absurdo?
— A conseqüência da admissão desse absurdo é a impossibilidade de arrazoar com um revolucionário autêntico.

VIII. Qual o modelo e o exemplar de todas as revoluções?
— É a Revolução Francesa, que convém escrever sempre em maiúsculas.

IX.    Uma vez que deve a revolução se apoiar no real, a fim de empreender a obra de destruição do real – de que ela se aproveita para começar?
— Vale-se sempre a revolução das reações naturais, das reivindicações justas, das aspirações legítimas. Mascara sua empresa com um início que parece honesto.

Esse início é uma imposição de sua essência, pois é preciso se apoiar naquilo que é, i. e., numa exigência justa.

EXEMPLO: declara o estudante: - A sociedade de consumo quer me transformar em autômato, a mim que sou moço e generoso; por isso, me revolto.

Dizem-lhe bem a moral e o cristianismo: há uma ordem absoluta da lei e da verdade, que começa com a ordenação da alma, o respeito à tradição e a aplicação progressiva e dolorosa dos princípios da lei superior e da verdade nas instituições, que são boas mas sujeitas a deformações. Contudo, não dá ouvidos o estudante, porque já há cem anos que a autoridade dos mestres lhe incutiu a lei da revolução: ante a injustiça, apenas revolta, subversão e destruição das instituições. Teu papel, ó jovem, é contestar e só contestar; teu vantajoso papel é dispensar ligeiro a energia vital e renovada – ou o que restar dela. Não te conto que destarte caminharás para a anarquia e a própria aniquilação. Ofereço-te um absoluto, pois que tua natureza necessita de um; esse absoluto sedutor é a revolta.

No entanto, não consegues enxergar a destruição da Natureza.

X.      A revolução, que de início se apóia numa reação natural, confunde-se com outra aspiração fundamental do homem?
— Claro, a sede de felicidade. O ponto de partida é a opinião que sustentam sobre as desgraças humanas e o desejo de julgá-las pela inveja e pelo ódio; o ponto de chegada é a felicidade na terra e o direito de buscá-la diretamente.

XI. Não tem o homem o direito de buscar diretamente a felicidade?
— Não, tem o homem o dever de cumprir diretamente a vontade de Deus e só assim alcançar a felicidade, não nesta mas noutra vida.

XII. A revolução abandona ao acaso o processo de revolta?
— De modo nenhum; a revolução dá a impressão de ser movimento contra a dependência, mas é autoridadeque manobra suas vítimas com sagacidade.

XIII. Os governos oriundos da Revolução do séc. XVIII são tal autoridade?
— A autoridade permanente da revolução é oculta, mas é certo que se distingue do poder político. O poder, que não passa da sede administrativa da revolução, é manobrado. Num primeiro momento, após as desordens da revolta, a autoridade revolucionária assegura o poder. Objetiva legalizar a desordem pelo sistema dasconcessões, permissões e reformas. Quando se legaliza o estado de revolta, a revolução suprime o poder que lhe prestou o serviço e fabrica outro para si.

XIV.  Que é tal autoridade oculta, que manobra e não é manobrada?
— Essa autoridade oculta é uma máquina.

XV.  Mas uma máquina é sempre manobrável. Que é a máquina? E quem a manobra?
— Compõe-se a máquina dos homens que pensam que o mal não lhes é imputável, mas “aos outros”, e que o dever perante Deus não é absoluto.

Quem a manobra é o príncipe deste mundo – ou satã.

Ela é uma maquina satânica, pois deseja satã o aniquilamento do bem e a danação do homem – e decerto esse é o caminho da revolução.

XVI.  Como indivíduos racionais e livres podem compor uma máquina?
— Eis as fases desse fabrico:
·         Deus não existe;
·         A liberdade é o direito de fazer o que bem entender;
·         A autoridade não vem de Deus, mas do acúmulo das liberdades;
·        As liberdades formam as “sociedades”, cuja única finalidade é constituir associações de eleitores, reivindicadores e peroradores, tudo em nome da liberdade;
·         Nessas sociedades, diz-se ao povo que ele tem poder soberano;
·        Torna-se a vontade geral “aquilo que cada um cede a um pequeníssimo número de pessoas” (Augustin Cochin);
·         Unida e motivada, essa minoria de iniciados manobra a massa passiva, medrosa e apaixonada;
·         Monta-se a máquina.

Inventam-se, pela opinião, decisões comuns às quais todos se submetem – seja por interesse (medo da perda), temor, delação ou passividade.

Com a máquina a todo vapor, soltando das entrosas os nomes prestigiosos dos que a montaram ou de adventícios – espanta vê-la funcionar e triturar por contra própria.
Com efeito, cai o poder efetivo nas mãos de irresponsáveis. Tudo é legítimo, pois a sociedade é o povo, apontado como o único responsável; os irresponsáveis que geram monstros de incapacidade (pouco importa a estupidez, pois ela não é punida) engendram outras irresponsabilidades; não há como incriminar alguém que pertença à “justiça popular”.

XVII.  Mas que aconteceu com os verdadeiros cidadãos que abominam ser governados por uma máquina?
— Eles foram embora: como se sentiam deslocados, eliminaram-se a si mesmos. São “os pesos mortos”, que perceberam a impossibilidade de ação no interior de uma revolução e a quem lhes era permitido só falar. Ou desistiam ou a revolução liquidá-los-ia por violência. O terreno fica livre aos palradores – e a máquina continua a funcionar. Em última instância, a revolução dispensa a inteligência.

XVIII. Tal proposição é a rigor verdadeira?
— A proposição está incompleta. Ante o historiador cristão, tudo acontece como se a máquina fosse cega, mas o mal é demasiado grande e poderoso, e tem uma carranca medonha – é ele o mistério da iniqüidade, e seu promotor – segundo nos ordena a fé apontar – é o próprio satã.

XIX.  Como resumirias o andamento constante da revolução?
— Resumi-la-ia pelo andamento hegeliano do comunismo, que é o término natural dessa imensa administração secreta da inércia, que é de si inércia: tese – antítese – síntese:
– O real, aquilo que é, o que quer que seja, fornece a tese;
– Por seu contrário, o real fornece a antítese;
- Daí, vive a contestação e alimenta-se a revolução, que liquida e absorve o opositor – e eis a síntese; mas a síntese, revolucionária de natureza, é instável e mutante, e trás ao seio o germe da contestação: tese, antítese... etc.

Exemplo: em maio de 1968 o “poder” manobrado, ou a sociedade dita de consumo, fez o papel da tese; a juventude revoltada, de antítese. Mas o processo destarte engendrado acelerou-se acima do ritmo da máquina; os jovens já se encontram na fase a anarquia. Paremos! Agora, nova tese: gaulismo. Antítese: o “racional” partido comunista. Lembreis todos de como o “velho partido comunista francês pareceu moderado” ao lado dos Cohn Bendit. Síntese: a célebre participação, em que se esconde a robotização dos franceses sob a batuta da casta dos tecnocratas.

Com tudo, avançou a entrosagem revolucionária.

Decerto ganhou o comunismo com essa nova síntese. Todavia, pela primeira vez, sentiu-se ele no papel de tese ante “a força impetuosa que descobriu o próprio poder e o gosto da subversão como movimento”.
A revolução devora seus próceres: se o comunismo aburguesado de Moscou deseja irradiar a revolta a seus satélites e “evitar que a esquerda – a quem chama de extremista, mas com quem compartilha a substância mesma da revolução – o subjugue”, força é que revenha sanguinolento (mais ainda).
A devoração dos próceres – que levou ao cadafalso os constituintes, e depois os girondinos, e depois os montanheses – evidencia-se na revolta da Universidade: a mocidade armada de uma lógica aos saltos executanum átimo o que destilam gota a gota em suas almas professores estultos, intelectuais ainda aferrados ao puro jogo abstrato das idéias.

No inferno revolucionário, é o discípulo maior que o mestre.

“Desse modo, um Yanquelevitch, pensador e adepto da constestação absoluta, já não provoca admiração nos alunos, que se limitam a aplicar o que aprenderam dele”.

XX. Dá exemplo dalguns termos em si inofensivos que disfarçam as maquinações da revolução.
— Dentre vários, dois termos:
a) A paz é miragem que significa “extermínio adiado, mas a caminho”; seus oponentes são considerados como semeadores da discórdia e obstáculos à paz. A paz revolucionária é sempre o prenúncio da guerra – grande ou pequena –, sem a qual é impossível a revolução viver, pois toda síntese nasce da guerra e está prenhe de outra.
b) Dialogo: para a revolução, um termo em si pacífico como dialogar tem um sentido maquiavélico e complexo.

Dialogar é não estar de acordo – todavia, é também entrar em acordo prévio com o interlocutor, ou seja,dispor-se a lhe dar o que pede. Quem se obstina numa opinião diferente da do interlocutor é declarado como “incapaz de dialogar”.

Com esse espírito, conviria definir termos tais como pátria, direito, libertação, etc.

XXI. Que máxima resume toda a atividade revolucionária?
— A máxima que resume a atividade revolucionária é diabólica: Solve / Coagula.
Solve: tanto quanto possível, dissolver as estruturas civilizacionais por diluição, aniquilamento e depreciação.
Coagula: cópia sacrílega da ordem por excelência – a ordem cristã; daí a paródia da caridade, que acolhe as contradições, os erros, as extravagâncias, em suma, as coagulações contra a natureza, cuja pior é a entre o catolicismo e o comunismo. Caos absurdo, religião-síntese das heresias; a unidade do caos se dá pela ação da tirania cega sobre a inércia inconsciente.

XXII. Não seria possível definir a revolução a partir da personalidade de seus próceres, por ex., Jean-Jacques Rousseau?
— Os escritores e os poetas não são os próceres da revolução; embora não dispense os técnicos, pode ela abrir mão dos gênios e, em última instância, como já vimos, da inteligência e dos cabeças: as sociedades chamadas “de pensamento” bastam ao naufrágio da sociedade natural das pátrias, dos professores e das famílias.

Mas in re – na realidade – as minas que “a máquina” plantou no solo só explodem ao bafejo dos poetas: não são eles próceres, mas os maestros da orquestra. Não tratemos de esquecer os chantres: toda guerra tem seu aedo.

Quando assesta Ulisses as flechas aos pretendentes, o aedo Formião, aterrado, esconde-se sob a poltrona; vertido o sangue e consumada a vingança, Ulisses nota o aedo tremebundo, mas assegura Telêmaco que suas gestas cantavam apenas a Guerra de Tróia; era o canto útil ao governo vencedor, testemunha Penélope. Não obstante houvesse cantado para os usurpadores, concederam-lhe a graça; ninguém, entretanto, negou o poder de seu canto.

Para que irrompam as revoluções e as minas plantadas corrupiem e destruam, há mister de gênios e talentos de inspiração real mas demoníaca, sentimental e cega.

No século do “espírito”, Voltaire é o demolidor admirável – o bom apóstolo a destilar o vitríolo da tolerância; Jean-Jacque Rousseau é sobretudo o iluminado, o harmonizador, o chantre extravagante da revolução no amor, na educação e no governo.

Aqui devemos citar o Sr. de Chateaubriand que, nos seus vinte anos, hirsuto ao mês das tempestades – atualmente chamado de maio – deliciava-se em dizer “às borrascas desejadas”: levantai-vos!

O pai Hugo cria-se o pajé da política; chegou a ser ao menos a boca sombria e profética do horizonte revolucionário:

O poeta é homem de utopias,
Com pés na terra e olhos nos céus,
Acima dos mortais, os poetas,
Em todos os tempos, quais os profetas,
Devem iluminar o que há de vir,
Ouçam o sagrado visionário!

Citemos, com Louis Daménie, o visionário Jules Michelet, que divinizava a Revolução e a considerava o advento repentino da “justiça” realizado pelo “povo de súbito iluminado”!

Falava um poeta na boca do político Jaurès, quando ele exclamava esta lírica profissão de fé:

“Há-de se salvaguardar, antes de tudo, a idéia de que não existe verdade sagrada, de que nenhum poder ou dogma deve limitar a raça humana em seu esforço e em sua busca perpétua; a humanidade deputa como uma grande comissão de inquérito, cujos poderes são ilimitados!”

Eis aí o profeta inspirado dos progressitas, dos padres novidadeiros: um poeta altivo da altiva máquina...

Cohn Bendit é o aedo conveniente a 1968... essa fase está superada; já não se precisa de alexandrinos nem de eloqüência socialista. Cada época tem os agitadores histéricos que merece.

Le Sel de la Terre, nº 22
Tradução: Permanência