Quando eu era ainda criança, costumava frequentemente ir até
à beira de um tranquilo remanso e atirar pedras à água. Nunca me fartava de
olhar com admiração para a maneira como cada pequeno circulo produzia outro
maior até que o último batia nos bordos e pouco a pouco se desfazia, tornando a
água à sua primitiva paz.
Qual é o círculo mais intimo da vida, aquele cuja vibração
se nota nó lugar mais remoto? A hora da família começa quando a sagrada união
de homem e mulher começa a florescer. Também pertencem à família os avós e os
antepassados, mas são apenas o segundo e terceiro círculos que as ondas da vida
fizeram.
Aqui somente falamos do círculo íntimo.
Neste círculo interior atinge a mulher a sua mais alta
dignidade e a sua última plenitude, torna-se uma nova “mãe da vida”! A sua
dignidade maternal é o mais valioso tesouro desse círculo íntimo. O próprio Cristo
se encontra imerso nele. Antes de começar a difundir a palavra divina, antes de
se entregar ao sacrifício redentor da cruz, e de estabelecer a sua Igreja,
preferiu o silencioso lar de Nazaré. Os mais maravilhosos acontecimentos da
vida de Cristo não são as grandes curas ou a expulsão dos demônios; mais maravilhosa ainda que a ressurreição de Lázaro, é a vida oculta
no círculo íntimo da família de Nazaré.
Nos milagres manifestava-se a divindade, mas aqui é um homem
entre os homens.
A
SAGRADA FAMÍLIA
Debrucemo-nos
sobre a figura de José, um homem completo, de quem diz a Escritura: “era um
homem justo”. Olhemos para Maria, a mãe sem pecado, a cheia de graça. Aí está o
Filho que traz consigo a plenitude divina do Pai. E o céu contemplava esta criança
de Nazaré: “O Pai punha nele as suas complacências, e ele crescia em idade,
em graça
e em sabedoria diante de Deus e dos homens”. Era uma trindade santa entre os
homens, imagem do círculo íntimo de Deus; família verdadeiramente sagrada, modelo
dessa trindade humana feita de pai, mãe e filho.
Foi
este o motivo por que a Igreja incluiu a festa da Sagrada
Família no ciclo dos seus mistérios. Todos os anos no domingo seguinte ao dos
Reis, continuamos a celebrar a memória desta santa trindade humana.
Enquanto
o mundo existir, nenhuma outra família poderá igualar-se a esta, em beleza e
virtude, em prosperidade e paz.
Não
se trata contudo de um idílio romântico, irreal, alheio à vida. Porventura não
foi esta família
a
realização de um ideal que Deus
pediu aos homens?
José
foi mergulhado na noite dessa dúvida que pairava sobre a sua esposa. Os primeiros
dias do jovem casal estão rodeados de preocupações, e as etapas da sua fuga são
antes estações do amor e da inquietação.
Sobre
Maria pesa a incerteza dó destino futuro do seu filho: “uma espada atravessará
a tua alma”.
E
quando o Filho foi conduzido ao Templo, aos doze anos, todas as feridas
tornaram a abrir-se. No entanto, apesar destes perigos, ou melhor, por meio dessas
provações, a família de Nazaré pôde vir a ser o protótipo e a imagem sagrada de
todas as famílias.
O JARDIM DA PANÓNIA
No fulcro da história da Hungria, está inscrito o nome de
outra família verdadeiramente santa. No começo do ano mil, quis dar-nos o
Senhor o primeiro modelo de uma santa família húngara. Nasceram flores no
jardim da Panónia: Estevão, o rei santo, pai e apóstolo do seu povo; Gisela,
que com mão prudente educou os filhos e cuidou solicitamente do jardim, para
que pudessem crescer flores impolutas. O primeiro fruto desta nobre estirpe foi
Emérico, o santo, o orgulho da Casa de Arpad, o porta-estandarte dos altos
ideais da juventude panónia.
“A mão do Senhor o realizou”. Estas duas famílias são para
nós modelo e escola. A essa escola de Nazaré e a esse jardim
da Panónia devem ir os pais, as mães e os filhos; e conseguirão valor e
fortaleza, quando forem iluminados pela luz e pela força de José ou de Estevão,
de Santa Gisela ou de Maria, a Virgem Santíssima.
Quando o próprio Deus estende a sua mão sobre alguma coisa,
os homens devem prestar uma atenção cheia de respeito. Nos primórdios da humanidade
Deus criou a família, e esse círculo íntimo que recebeu a vida de Deus, deve
voltar a encontrar nele o seu sentido.
A História ensina - e a vida dos povos confirma o seu
testemunho - que a família é a célula originária das nações. Só o desvario mental
de Rousseau substituiu essa unidade de três pela unidade solitária dos
indivíduos autônomos: despedaçou a humanidade e os povos em milhares e milhões
de átomos isolados.
Uma ciência mais sensata regressa agora à doutrina de que a
família é a célula e a forma primitiva de toda a comunidade humana. Ainda que
nos encontremos numa grande comunidade social, sempre a família é a nossa
primeira pátria e, como diz Sigrid Undset, o ambiente essencial de toda a
cultura e de toda a religião.
Só um cego pode deixar de ver que a família é o elemento de
conservação do gênero humano. O fim em vista é que nasçam novos homens, e que
os recém-nascidos possam atingir a sua maturidade humana.
É por isso
que cada família tem a sua alma própria, as suas ambições e os seus desejos, as
suas alegrias e as suas lutas, o seu calor e a sua temperatura próprias, a sua
história e a sua linguagem.
O amor e a autoridade estão no âmago da família.
O pai e a mãe são os dois fogos que alimentam esse círculo
íntimo, e o amor e a autoridade conseguem realizar a unidade de todos. Entre pais
e filhos aparece um vínculo poderoso, a pietas, o amor reverencial, desinteressado
e recíproco.
A vida na intimidade desse pequeno círculo constitui a
felicidade de todos. Para o pai, é um mundo inteiramente submetido ao seu
domínio; para a mãe, é a plenitude da dignidade maternal; para o filho, representa
o carinho, o amparo e a educação. E os povos tiram dessa fonte as forças de uma
nova juventude.
UMA HISTÓRIA
DE PIRATAS
A família
possui um extraordinário poder de transformação. O esposo e a esposa que
começam a entrar nela, são atraídos pelos fortes vínculos do amor e, pouco a
pouco, sofrem uma profunda transformação, de tal modo que o fi1ho é já um filho
desse lar.
Daí deriva o
fato de que a família imprima nos que a compõem um cunho característico.
Uma velha
história de piratas pode servir-nos como um dos mais curiosos exemplos desse
poder de transformação. Nos tempos posteriores a Colombo, os mares eram o campo
ideal para os piratas que apareciam, quer em Gibraltar, quer nas Índias ou no
canal do Panamá, tornando perigosa a navegação. Por acaso, um deles
extraviou-se perto da Martinica e quis confessar-se a um missionário, o padre
Labat. Um dia, este padre foi ao encontro do chefe dos piratas e cominou que
pusesse termo a esse gênero de vida, prometendo que lhes seriam dados lar,
casas e terras que pudessem cultivar. Assim se fez, e houve mulheres que
quiseram unir o seu destino ao destes homens.
Os selvagens
piratas do mar tornaram-se pacíficos camponeses, e o fogo tranquilo do lar
domou a ferocidade daqueles salteadores, que vieram a ser, ao longo da
história, um firme esteio da Igreja católica naqueles lugares. O exemplo mostra
a profunda verdade contida nas palavras do bispo Glatlfelder: “O fundamento mais
sagrado e indestrutível da civilização humana são o altar e a família”.
Nem sequer
os próprios membros da família suspeitam que nesse círculo, tão pequeno e
frequentemente tão despretencioso, se encerra a felicidade e a paz e que nele
se encontra a raiz da nação, do Estado e de toda a humanidade. Representa por
isso a maior riqueza de todo o mundo. Basta a decadência da família para que se
gerem autênticas e terríveis revoluções, e quando se apaga o fogo sagrado do
lar, a humanidade precipita-se nas mais 1profundas trevas da barbárie, ao
anularem-se os mais firmes fundamentos da vida.
Ainda que mudem
os governos e se afundem os tronos e desapareçam as culturas, a família
permanece incomovível através dos tempos. Todas as forças negativas que
existiram ao longo da História encontraram a sua origem, em maior ou menor
grau, na decomposição da família. Por outro lado, basta uma só família, ainda que
não esteja excessivamente bem constituída, para haver uma poderosa força de
unidade social.
É sempre ela
que defende o direito e os bons costumes e transmite a herança dos antepassados
às gerações vindouras.
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Cardeal MINDSZENTY.
A Mãe, 2ª ed., Lisboa: Aster, pp. 43-48.