domingo, 20 de setembro de 2015

O MITO E A REALIDADE DO AMOR

"Um só Tristão para uma só Isolda". Todo o amante julga única a sua bem-amada. É falso e é verdadeiro. O amor, como os contos de fadas, é uma mentira e uma realidade. Mentira, quando pretende aplicar-se às aparências terrestres, e realidade, como símbolo da vida espiritual e divina. Tem três graus: o sonho, que é uma aparência de aparência, depois esta aparência um pouco mais sólida do que nós chamamos o real, e enfim a verdadeira realidade, pressentida através do sonho e experimentada pela realidade imperfeita da vida quotidiana, a qual fecha o ciclo e nos põe em contacto com o eterno.
Todos os amorosos julgam possuir um ser eleito entre todos e encontrado por milagre. É estúpido, porque, não dispondo de uma escolha infinita, e impelidos por esta força essencialmente cega e anônima que é a sensualidade, são obrigados a contentar-se com o que encontram. O melhor amor, no princípio, não passa da combinação de uma necessidade e de um acaso. E o que nós amamos na bem-amada, é mais a posse do que o objecto, a consolação do que a consoladora. A própria fidelidade nada prova. Há homens de hábitos que se prendem a uma mulher, como certos amadores de vinho que só querem beber carrascão ou certos automobilistas que ficam sempre fiéis ao mesmo tipo de carro...
O amor verdadeiro começa quando a gente reconhece que o amor das criaturas não existe e que o ser "eleito" não passa de um alimento oferecido à nossa fome pelo acaso dos encontros ou de um equívoco e uma ilusão do nosso caminhar às cegas para o absoluto. Qualquer outro teria fàcilmente ocupado o mesmo lugar, porque não há pão duro para quem tem fome e toda a madeira é boa para fazer ídolos. A revelação é dura, mas deste banho de verdade, vasto e amargo como um oceano, vê-se surgir, como uma aparição que dissipa as aparências, um novo amor da criatura que nada mais deve à necessidade, ao acaso, e a mentira; este amor é puro, porque reconheceu e se despojou de todas as medidas, invulnerável, porque atravessou a morte, único, porque encontra no ser amado a imagem virgem do Deus criador. Mas antes de ressuscitar faz morrer, e é por detrás da lia do nada que se saboreia o ser.
Assim, nós não amamos um ser porque ele é único, pelo contrário, porque nós o amamos é que ele se torna único. É o amor que nos eleva à existência imutável e imortal; ele é "forte como a morte", porque, como ela, nos arranca ao tempo e às aparências. Antes de amarmos e sermos amados, não temos verdadeira existência; não passamos de uma nebulosa de possibilidades confusas e quase anônimas. O amor liberta-nos da massa informe e comum, do vão turbilhão dos átomos inseparáveis; de duas solidões faz uma. Assim, todos os blocos de mármore do mundo se assemelham mais ou menos; mas quando Miguel Ângelo escolheu um deles, ou fosse por acaso ou para esculpir o seu sonho, todos os acasos são imediatamente ultrapassados, e a forma da estátua corresponde a uma ideia única de um Deus eterno. E a matéria e a forma da obra tornam-se inseparáveis para sempre.
É precisamente o milagre do amor transformar os encontros do acaso em dons da Providência, e revelar-nos, através das provas que matam em nós tudo o que é mortal, a frágil e divina centelha de um amor irredutível a todos os denominadores comuns da matéria e do tempo. Como, sem passar pela morte, saberíamos nós que temos algo de imortal?


___ Gustave THIBON. O olhar que se esquiva à luz, Porto: Livraria Figueirinhas, 1957.

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