terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

UM CÂNTICO DE LIBERTAÇÃO

Traçando, então, o sinal da Cruz afasto de mim a garra diabólica da negação. Creio no Espírito sobre todas as coisas criadas e incriadas, - creio no Verbo feito Carne para nos remir e salvar. E o Espírito reinará com a vinda do Senhor nascido para a sorte dura dos homens sobre as palhinhas miseráveis de Belém.
Como na letra admirável do Salmo, os meus ossos humilhados estremecem de jubilo. Eu creio!
Eu creio! É um cântico de libertação o cântico que entoo, como Davi, diante da Arca, à orla do ano que não que não tardará a romper, - à cabeceira do outro que já resvala para a confusão primitiva das origens. E, solene, o relógio entrou a falar do alto da catedral.
Na comemoração dos vivos e dos mortos recolho-me à cadeia interminável da geração de que provenho. Era uma vez... Era uma vez, uma vila clara, com muralhas caídas, um lar honrado de lavradores, onde o arado alternava com a espada. Com o suor sagrado dos velhos construtores de antigamente, essa família se enraizava e durava. Foi árvore frondosa, bracejando devagar, mas bracejando com vigor. Se lhe buscarem bem as ramadas, tanto as acharão devolvidas à terra, de quem haviam surgido obscuras e sem nome, como estilizadas já, a tintas heráldicas, nos armoriais luzidíssimos do Reino.
Pois na jornada larga dos séculos, o lar que nos séculos se cimentava pela virtude e pelo trabalho, viu apagar-se o lume tutelar e sumirem-se no vago as expressões serenas dos avós.
Eu me persigno confessando ao Deus de meus Pais, que é Pai de todos os Homens, Criador de coisas criadas e incriadas. A névoa lá fora adelgaçou-se, como que deixando transluzir uma poeira finíssima de luar. A escada de Jacob revela-se na noite escura, para os que sabem elevar o pensamento bem alto. Encosto-me aos seus degraus, e encontro com que embalar a minha amargura”.
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Antonio SARDINHA. Nocturno de São Silvestre, "Na feira dos mitos", Edições Gama: 1942, p. 306-307.

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