sábado, 21 de outubro de 2017

O PENSAMENTO UTOPISTA

“Nos damos o direito de descrever o pensamento utopista como a crença em um início imaculado e em uma perfeição alcançável. Quando se analisa a mentalidade utopista deve-se destacar que todos os avanços que ela efetua partindo desde o hipotético, ou postulado estado de perfeição primitiva até o de perfeição restaurada, encontram-se sempre acompanhados de doses exageradas de pessimismo e de otimismo que se apresentam mescladas em proporções que nos parecem chocantes. É muito comum que uma concepção tão pessimista do universo como a que se apresenta no materialismo radical, e segundo o qual todas as coisas foram criadas ao acaso e de tal modo que o próprio ser humano não é mais que uma agregação fortuita de átomos, leva a um otimismo irracional sobre a possibilidade de estabelecer uma comunidade feliz. Na realidade, nesse caso o pessimismo e o otimismo não se contradizem mutuamente já que cada um possui seu rol delimitado: o utopista pode muito bem permanecer sendo pessimista sobre a natureza humana individual enquanto conserva seu otimismo sobre a natureza social do homem, tal como se apresenta incorporada na comunidade, e de seu poder para vencer a contumácia do indivíduo. É certo que vencer a resistência individual implica o emprego da força, mas o utopista assegura que isto se justifica quando as metas são a bondade e a perfeição. Ademais, até é admissível estabelecer um governo especial daqueles que foram eleitos como depositários da doutrina da sociedade perfeita; tais eleitos têm o direito supremo de obrigar a cada indivíduo a abandonar seu egoísmo e a adornar-se com a roupagem de candidato à perfeição.
Esta condição de candidatura pode durar indefinidamente. A noção mesmo de governo dos eleitos, quer dizer, de teocracia, implica uma ameaça perene por parte das potencias do mal não corrigido ou, no melhor dos casos, pelos vestígios persistentes daquele. Por isso a teocracia não ceder nunca, pois enquanto exista o perigo – e a simples ausência de entusiasmo pelas leis teocráticas se interpreta como sinal de perigo – as forças repressivas não devem afrouxar sua tensão. Aos que manipulam tais forças há que mostrar-lhes que seus sujeitos, os candidatos à perfeição, vivem em estado de entusiasmo permanente.
Naturalmente, dado que sempre se apresentarão coisas que façam perigar essa teocracia, os designados para administrar insistirão em demonstrações regulares e entusiastas de adesão. Por exemplo, sob os regimes comunistas não é permitido ao indivíduo permanecer simplesmente em silêncio: deve falar, escrever, aprovar e proclamar, tudo isto com um entusiasmo mais sonoro que o de seu vizinho.
Pessimismo em relação ao indivíduo, otimismo em relação à coletividade e entusiasmo exaltado.
(...)
Se afirmou que tais construções utopistas configuram um jogo realizado com elementos tirados da realidade, mas ordenados de maneira diferente.  Sem embargo, e como fez notar Raymond Ruyer em L’Utopie et les Utopies, o elemento que mais salta à vista na literatura utopista é a crítica social e política, o desgosto ante a comunidade atual, com seus regimes políticos e seus obstáculos à felicidade. Ademais, como já afirmado, estes utopistas não mostram nenhum desejo de efetuar simples reformas, pois sua crítica vai muito além de uma mera proposta de simples mudanças: com efeito, são os fundamentos mesmos do estado da humanidade o que esses pensadores quiseram demolir para em seu lugar colocar outros novos. Nesse sentido, ditos estudiosos merecem o qualificativo de ‘radicais’, já que sua reconstrução da sociedade e do homem exige uma renovação total das elucubrações acerca de Deus e da Criação.
Como pensador, o utopista é simultaneamente irracional e lógico. Uma vez edificada sua república imaginária (e algumas vezes se trata inclusive de um mundo fantástico com suas próprias leis físicas distintas das do nosso), uma vez realizado esse grande salto para dentro de um sistema distinto de ideias, procede com uma lógica estrita, sem deixar nada abandonado à própria sorte. Suas criaturas humanas se comportam ou se as faz comportar como autômatos, e a organização de suas vidas, no curso das quais executam com precisão cronométrica as tarefas assinaladas por uma autoridade central, não muda jamais. Precisamente em razão de que o pensador estabeleceu seu sistema próprio fundamental de ideias, o povo estruturado pela mente do utopista já não se encontra mais na dependência de sua natureza humana e de toda a rica gama de variações que ela pode brindar: o utopista se permitiu manejar seus dramatis personae com muito maior liberalidade que o corrente em um novelista ou em um dramaturgo. Suas criaturas, cortado o cordão umbilical que as ligava à mãe terra e à Humanidade ordinária, se convertem então em marionetes, semelhantes a esses homens sem alma que em alguns contos fantásticos se denomina como zombies, carentes de toda dimensão histórica, despojados de toda liberdade e de toda possibilidade de escolher”.
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Thomas MOLNAR. El utopismo: la herejía perene. Buenos Aires: EUDEBA, 1970, PP. 16-17.

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