Entre as atitudes humanas fundamentais para a vida moral, figura também a fidelidade.
Pode-se falar de
fidelidade em sentido amplo e em sentido estrito. Temos em vista o sentido
estrito quando falamos de fidelidade a seres humanos; assim, por exemplo, no
caso da fidelidade entre amigos, da fidelidade conjugal, bem como da fidelidade
à própria nação ou da fidelidade a si mesmo.
Mas esta fidelidade
já pressupõe a fidelidade em sentido amplo. Refiro-me àquela constância que
primordialmente confere à vida a sua coesão interna, a sua íntima unidade. Só
firmando-nos nas verdades e valores que um dia se nos desvelaram é que se nos
torna possível construir a personalidade.
O decurso de uma vida
humana encerra um contínuo revezamento de diversas impressões, tomadas de
posição, ações. Não conseguimos pensar muito tempo seguido numa única idéia ou
permanecer com a atenção fixa num só ponto. Assim como na vida biológica se
sucedem a fome e a saciedade, a fadiga e o vigor, assim também a vida do
espírito tem certa mobilidade peculiar. Dada a sucessão de impressões que nos
marcam, dada a torrente de acontecimentos que nos trazem ao espírito uma
heterogeneidade de objetos, a nossa atenção não se pode fixar sempre do mesmo
modo; e o nosso pensamento caracteriza-se por um ir e vir de conteúdo para
conteúdo, outro tanto se podendo dizer dos nossos sentimentos e desejos. Mesmo
num acontecimento feliz, como o reencontro longamente ansiado do ser amado, não
nos podemos demorar muito; do pleno presente da alegria profunda, a torrente da
nossa experiência retorna pressurosamente a outros rumos que nos prendem a
atenção e as vivências.
Mas o homem tem
diversos níveis de profundidade. A sua vida interior não se limita ao nível em
que se dá essa contínua mudança, ao nível da atenção expressa da consciência
"atual". Quando continuamos a correr para outra impressão ou
conteúdo, o passado, em vez de se perder sem mais, finca-se na camada mais
profunda e aí sobrevive. Decerto que é já exemplo disto a memória, a capacidade
de recordar, que liga passado e presente; mas, para além disso, a sobrevivência
de fundo das nossas atitudes em face do mundo, da posição tomada perante as
verdades e os valores fundamentais, enquanto a nossa atenção atual se fixa em
questões inteiramente diferentes.
É mais ou menos desse
modo que a alegria de um acontecimento profundamente feliz sobrevive no funda
da nossa alma, dando um colorido especial a tudo o que fazemos em determinado
instante. Enquanto trabalhamos, continua a resistir, vivo, no fundo de nós
mesmos, o amor ao ser amado, como uma reserva oculta por cima da qual se passa
tudo o mais.
Sem esta capacidade,
o homem careceria de qualquer unidade interior, seria apenas um feixe de
impressões e vivências sucessivas. Se uma impressão sempre e sem mais se
substituísse a outra, se o passado se perdesse indiferentemente, a vida
interior do homem ficaria privada de sentido e de conteúdo; não haveria nenhuma
estrutura, nenhum desenvolvimento, não haveria sobretudo "personalidade"
alguma.
Ora, ainda que esta
capacidade de retenção, sem a qual se tornaria impossível a vida própria da
pessoa espiritual, se dê em todos os homens, é decerto variável o grau em que
se forma nos indivíduos concretos a coesão interna e persistente da sua vida.
Os homens
distinguem-se uns dos outros pela sua diferente profundidade: uns vivem na
camada mais superficial da sua consciência atual, e neles as vivências se
sucedem fragmentariamente umas às outras, de modo que bem poderíamos
denominá-los efêmeros; desses homens dizemos que se esgotam
inteiramente no momento que passa. Outros vivem das camadas mais profundas da
pessoa, e nada de significativo desaparece só por não ser já presente, antes se
torna um cabedal humano sobre o qual se constrói algo de novo, cheio de
sentido. Só estes últimos merecem o nome de personalidades. Só
neles se pode formar uma riqueza interior.
Quantos não há que
chegaram a conhecer grandes obras de arte, viram países magníficos, entraram em
contato com homens notáveis - mas sem nada lhes deixar efeito duradouro!
Talvez, por instantes, tenham ficado fortemente impressionados, mas nada lançou
neles raízes profundas, nada "retiveram", pois desapareceu mal se
deixaram levar por novas impressões. Esses homens são como uma peneira por onde
tudo passa. Podem ser bons, afetuosos, honestos, mas atolaram-se num estado
puerilmente inconsciente; não têm nenhuma profundidade, escapam-nos, são
incapazes de relacionar-se realmente com outros homens, porque lhes faltam de
todo em todo laços profundos com o que quer que seja.
São homens irresponsáveis,
já que desconhecem condições duradouras e nada conservam de um dia para o
outro. Ainda que as suas impressões sejam vivas, decerto não chegam a penetrar
naquelas camadas profundas em que, por sobre as mudanças de um instante, se
encontram as orientações e atitudes elevadas. Prometem honestamente alguma
coisa num instante, mas logo a seguir tudo se esvai; concebem propósitos sob
uma impressão forte, mas qualquer impressão mais forte que se siga lhos apaga.
São tão impressionáveis que, na sua vida, só a camada exterior
da consciência atual tem a palavra. Para esses homens, o que determina a
dedicação e o interesse não é o valor e o peso de um assunto, mas apenas o viço
e a intensidade do "presente". O que os domina é esta preferência
geral pela intensidade, em que a impressão presente ou a presente situação
levam a melhor sobre o passado.
Há duas espécies no
gênero destes homens volúveis. Primeiro, a daqueles em que, geralmente, nada
avança até a camada mais profunda, que permanece neles como que vazia. São
sempre homenssuperficiais, carentes de vida profunda e de qualquer
firmeza interior; parecem areia movediça, que logo cede sem mais: se
procurarmos neles um âmago duradouro, sobre o qual se possa construir, logo se
toca no vazio. Evidentemente, nunca é este o caso de um homem são; quem, em
sentido literal, fosse puramente "instantâneo", seria um psicopata.
No entanto, mesmo sem os podermos qualificar de doentes psíquicos, são frequentes
os homens cuja vida costuma transcorrer assim.
Da outra espécie
fazem parte os que, embora tenham impressões profundas e um âmago duradouro e
firme na sua pessoa, perturbam-se tanto com a impressão momentânea que o que
têm de permanente não consegue sobrepor-se à impressão do
instante que passa. Só quando esta se dissipa é que volta ao de cima o que têm
no íntimo. Tais homens, por exemplo, podem ter por alguém um amor profundo e
duradouro; mas basta uma situação forte, viva, expressiva, para num momento se
perturbarem de tal maneira que "esquecem" o ser amado, e fazem coisas
ou dizem palavras que nem de longe combinam com aquele amor que sobrevive lá no
íntimo.
São homens que sempre
estão em perigo de se tornar traidores. Neles, o presente
avantaja-se continuamente ao ausente, pelo interesse momentâneo, pelo papel que
desempenha nos seus pensamentos, sensações e desejos, embora, fundamentalmente,
estimem mais o ausente, que a longo prazo manifesta uma importância
inteiramente diferente.
Em contraste com estes
dois tipos, o homem constante conserva tudo o que se lhe deparou como verdade e
valor genuínos. A vivacidade do presente não tem poder algum sobre a sua vida,
em confronto com o peso interno das verdades, uma vez
reconhecidas, ou do valor ético, uma vez captado. A repercussão das
coisas na sua consciência depende exclusivamente da altura do valor que
possuem, e não da sua "atualidade". Tais homens estão, por isso,
imunizados contra a tirania de tudo o que é simples moda; já nada os impressiona
só por ser moderno, por andar momentaneamente no ar, mas apenas por ser
valioso, belo, bom, verdadeiro.
Para homens assim, o
mais valioso, o mais importante, é também e continuamente o "mais
atual". Para eles, o valioso nunca passa de moda, mesmo que há
muito tenha sido posto de lado no seu ambiente. A vida destes homens constitui
uma trama coerente e cheia de sentido, que espelha continuamente no seu decurso
a hierarquia objetiva dos valores, ao passo que a dos inconstantes vem a ser
presa das situações e impressões que se lhes deparam fortuitamente. São eles os
únicos a captar a sublimidade do que vale plenamente em todas as épocas e que,
cheio de valor e de verdade, nunca envelhece, nunca desmerece. Compreendem que
uma verdade significativa não perde o interesse nem nos deve ocupar menos, só
porque nos é conhecida de longa data. Reconhecem sobretudo que o que é valioso
não se limita a exigir-nos a atenção e o interesse no momento presente.
Só o homem constante
compreende realmente a exigência do mundo dos valores éticos, só ele é capaz de
responder aos valores com a resposta que objetivamente lhes é devida; isto é,
com uma resposta duradoura, independente do encanto da novidade, da
vivacidade do presente. Só aquele para quem jamais passa qualquer valor que uma
vez tenha brilhado, aquele que não esquece nenhuma verdade se uma
vez a penetrou - só esse faz justiça à peculiaridade do mundo da
verdade e dos valores,tornando-se capaz de se lhe manter fiel.
Esta constância, ou fidelidade no
verdadeiro sentido da palavra, é uma consequência necessária de toda a
verdadeira compreensão dos valores e, portanto, de toda a vida moral no seu
conjunto. Só uma resposta que se prende duradouramente ao valioso é uma
resposta moralmente madura e plenamente consciente.
Sob o ponto de vista
moral, só um homem destes é realmente adulto, digno de confiança;
só ele se sente responsável por tudo o que tenha feito noutras situações; só
ele se arrepende realmente da injustiça anteriormente cometida; só ele se sairá
bem nas provações.
Com efeito, para esse
homem, a luz dos valores morais continua a brilhar no meio do embotamento do
dia-a-dia, mesmo através da noite das tentações, porque é das profundezas que
ele vive e é do fundo de si mesmo que ele se impõe ao momento passageiro.
Quanto mais constante e fiel for o homem, tanto mais rico e valioso será, tanto
mais capaz de se tornar um autêntico vaso de valores éticos, um ser que viva e
duradouramente abrigue e irradie pureza, justiça, humildade, amor e bondade.
Basta observarmos as
diversas esferas da vida, para logo encontrarmos por toda a parte o significado
fundamental da fidelidade neste sentido amplo. Com efeito, essa atitude é o
pressuposto de qualquer crescimento da pessoa em geral e sobretudo de todo o desenvolvimento e progresso moral.
Como há de crescer moralmente quem não retém todos os valores que se lhe
revelaram, quem não faz deles para sempre um cabedal próprio? Como há de
realizar-se uma construção progressiva num homem dominado exclusivamente por
impressões momentâneas e de pouca duração? Sem estabilidade, de que serve a
melhor educação? De que servem as mais penetrantes advertências, a viva
descoberta de valores, se nenhuma raiz se prende no fundo ou no fundo fica
apenas e sempre a dormitar?
Por mais estranho que
pareça, os homens volúveis não mudam nunca. Conservam as
imperfeições e as preferências que possuem de seu natural, mas não conquistam
novos valores éticos. Ainda que num determinado momento compreendam tudo e
concebam os melhores propósitos, ainda que não lhes falte boa vontade, a
inconstância impede-lhes qualquer progresso moral duradouro. Não porque se
fechem, à maneira daquele que se contorce na sua soberba, tornando-se como que
impermeável, mas porque se abandonam demais a qualquer impressão, não
conseguindo "segurar" no turbilhão da sua vida nem mesmo
aquilo que tomam a sério.
A atitude fundamental
da fidelidade é, pois, pressuposto de toda a auto-educação. Só o
homem fiel consegue digerir interiormente as impressões contraditórias,
extraindo o bem de cada uma delas, aprendendo e crescendo com as mais variadas
situações da vida, porque permanece nele estável e viva a craveira dos valores
autênticos. Em contrapartida, o homem volúvel cede, ora a uma, ora a outra
impressão, e, sem mais, "cai"; tudo nele passa mais ou menos sem
deixar rasto.
Só o homem fiel, por
outro lado, prefere o mais relevante ao menos relevante, o valioso
ao que o é menos; o volúvel, esse, no melhor dos casos, mede pela mesma rasoura
todas as realidades valiosas, mesmo que assim pereça algum valor mais alto.
Ora, para o crescimento moral e, de modo geral, para a vida moral da pessoa,
nada é mais importante do que a consideração da hierarquia objetiva dos
valores, a capacidade de preferir constantemente os valores mais altos.
A atitude fundamental
da fidelidade é também pressuposto de toda a confiança, de toda acredibilidade.
Como há de alguém manter uma promessa ou merecer crédito na luta das idéias, se
vive apenas no momento que passa, sem formar uma unidade de sentido com
passado, presente e futuro? Quem poderá contar com ele? Só o homem fiel torna
possível aquela confiança que constitui o fundamento de qualquer comunidade; só
ele possui aquele elevado valor moral que reside na firmeza, na lealdade; na
confiabilidade.
A fidelidade é, além
disso, pressuposto da própria capacidade de confiar, da fé heróica.
O volúvel, além de que não merece nenhuma confiança, jamais consegue crer com
fé firme, inabalável: nem nos outros homens, nem em verdades, nem em Deus. É
que lhe falta o vigor necessário para viver do valor que uma vez contemplou, se
o rodeia a noite e a escuridão, ou se outras impressões fortes arremetem contra
ele. Não é por acaso que, nas línguas latinas, a palavra fides significa
simultaneamente fidelidade e fé. Com efeito, a fidelidade é parte constitutiva
e essencial do vigor da fé e, portanto, de toda a religião.
Muito especialmente
nítido é o significado transcendente da fidelidade no campo das relações
humanas. O que é o amor sem fidelidade? No fundo, uma mentira. Porque o sentido
mais profundo de todo o amor, o "sim" interior que se pronuncia no
amor, é uma íntima dedicação e entrega de si mesmo, que sobrevive sem
prazo algum, inabalável através de todas as mudanças na correnteza da vida.
Um homem que, por exemplo, diga: "Amo-te agora, mas por quanto tempo não
sei", nem amou realmente, nem faz idéia nenhuma da essência do amor. A
fidelidade é tão essencial ao amor que qualquer um tem de considerar perene a
sua dedicação. Isto vale para todos os amores: para o amor aos pais, para o
amor aos filhos, aos amigos, para o amor conjugal. Quanto mais profundo é o
amor, tanto mais o penetra a fidelidade.
É precisamente nesta
fidelidade que repousa o especial brilho moral do amor, a sua casta beleza. O
que o amor tem de especificamente comovente, naquele caráter único com que nos
surge no Fideliode Bethoven, prende-se essencialmente com a
fidelidade. A fidelidade imperturbável do amor de mãe, a fidelidade inconcussa
de um amigo, possuem uma especial beleza moral que toca o coração de quem se
abre aos valores. A fidelidade é, assim, o núcleo de qualquer
amor grande e profundo.
O que é que há, em
contrapartida, de mais moralmente baixo e disforme do que a infidelidade
manifesta, a antítese radical da fidelidade, que ultrapassa largamente a
inconstância? Que mácula moral se pode comparar com a do traidor que, por assim
dizer, apunhala o coração que se lhe ofereceu cheio de confiança e indefeso?
Quem for falto de fidelidade na sua atitude fundamental é um Judas perante todo
o mundo dos valores éticos.
Sem dúvida, há homens
para quem a fidelidade não passa de simples virtude burguesa, de mera correção
ou probidade. O homem livre, grande, genial - assim pensam eles - não precisa
de fidelidade. Néscio mal-entendido! Talvez haja, efetivamente, uma espécie de
fidelidade inócua e complacente. Mas o ceto é que a autêntica fidelidade é
parte indispensável, constitutiva de toda a grandeza moral, de toda
a verdadeira força e profundeza de uma personalidade.A autêntica fidelidade de
que aqui tratamos é o contrário da mera probidade burguesa ou da simples
atitude de quem se aferra aos seus costumes. Não deriva também de um
temperamento apático, como a inconstância não deriva de um temperamento vivo e
impulsivo.
A fidelidade é uma
resposta livre e cheia de sentido ao mundo da verdade e dos valores, à sua
significação imutável e autônoma, às suas
exigências próprias. Sem a atitude fundamental da fidelidade, não há nenhuma
cultura, nenhum progresso no conhecimento, nenhuma comunidade; mas, sobretudo,
nenhuma personalidade moral, nenhum amadurecimento moral, nenhuma vida interior
una e consistente, e nenhum amor verdadeiro. Todo o esforço de educação tem que
ter em conta este significado fundamental da fidelidade em sentido amplo, se
não quiser condenar-se de antemão ao malogro.
___ Dietrich VON HILDEBRAND. Atitudes Éticas Fundamentais. São Paulo: Quadrante.