quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

AS ORIGENS DA CONTESTAÇÃO TOTAL

Alfredo Lage

NADA É IMUTÁVEL; NADA É PERMANENTE

Mas que são os intelectuais de esquerda? Os membros de uma nova clerezia, a clerezia da nova Igreja, ou melhor, anti Igreja dos Iluminados (o clericalismo que suprime Deus mas conserva o padre, como observa Jules Monnerot), em suma, os devotos do irreal, os entusiastas do não-Ser. Ao contrário de Deus plenitude de ser para o fiel, o Absoluto tal como o concebe o pensamento de esquerda, observa Molnar, "nunca está completo pois é imanente à história que o engendra à medida que avança".
"A plenitude é esperada a qualquer momento ou dentro de um bilhão de anos", de qualquer sorte, o concreto é o inaceitável por definição. Toda materialidade é sinônimo de imperfeição. O presente é que conduz ao Real através de sua própria negação. No que existe aqui e agora, e em tudo que possui a concretude da existência, temos a matéria sempre renovada da contestação.
A única atitude construtiva consiste em recusá-lo em nome de um possível, objeto não de visão, mas de fé. "O espírito crítico da esquerda – a falar propriamente – não é pois um espírito crítico, mas um espírito de negação da realidade concreta" (La Gauche..., p.27). E o próprio Maritain escreveu na Lettre sux l´Indépendance que "o puro homem de esquerda detesta ser, preferindo sempre e por hipótese (...) ao que é o que não é" (cit. no Paysan de la Garonne, p. 39). O que não é – ou melhor; não é ainda – (vemos agora) é o Recomeço absoluto ou (como diz Hegel) o Resultado da História de antemão conhecido, o qual consiste na plenitude final por fusão no Todo.
Daqui para o horror do permanente, do que, aqui e agora, dura ou perdura, sendo dotado de natureza, que é o princípio de permanência; daqui – o repúdio das normas que são fixas porque derivam dessa natureza. Para o homem de esquerda, as normas morais (como o mesmo homem) são relativas ao tempo. A ética pertence ao domínio do provisório (onde o Ser não é ainda e tudo está "em questão" e todas as questões permanecem abertas). Tudo muda e a própria verdade deve resultar de uma negação. Nesse diálogo universal, que é a evolução sujeita à dialética, ou o processo mesmo da Humanidade divina, o atual está sempre sob acusação (pois tudo o que pretende ser, neste baixo mundo, ou nesta etapa condenada da História, é culpado de não querer durar). Na medida em que pretendem firmar-se na existência, os termos presentes de qualquer situação social ou de qualquer instituição, devem ser contestados. (O Conceito – como diz Fichte – transforma a vida imediata num ser fixo e morto).
A Igreja com as suas instituições e códigos, cúrias e dicastérios,  seu corpo imutável de dogmas e seu sistema disciplinar, a Igreja com organizações de base presas à terra (dioceses, paróquias, lugares consagrados, o Vaticano e suas secretarias e representantes no exterior, e tratados firmados com autoridades temporais etc). Essas mesmas autoridades civis, o Estado, com seu sistema jurídico, sua ação estabilizadora das relações civis e coordenadora dos vários grupos sociais (grupos de caráter local, profissional, etc); o Estado – repito – com seus instrumentos de coação e a precisa medida em que aspire à continuidade e pretenda ancorar-se aqui e agora, criando raízes neste mundo do provisório, é mau. Mau é tudo o que especifica, separa e diferencia, tudo o que, de modo constante, introduz diversidades, categorias, ordens, divisões, qualificações, fronteiras (por divisões, separações, oposições, multiplicidades são a marca do degrado ou alienado que se opõe no Uno). A família, unidade básica da sociedade civil e fator n° 1 de estabilidade social, a família, dotada de estrutura imutável e de uma hierarquia fundada na natureza é especialmente má. Pretendendo o homem à terra, merece tornar-se o alvo principal de todas as detestações. Não há atitude mais "construtiva" para a esquerda do que atacar, desmoralizar, enfraquecer e solapar por todos os meios a família. "Familles, je vous hais".


Alfredo LAGE. "As origens da contestação total", Revista Hora Presente, Ano III – Agosto/1971, n° 10,  p. 188/189.

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