A duplicidade é universal; ela nos cega, nos sufoca, nos desgarra, nos apodrece
e dissolve todos os nossos pontos de apoio. Nossa época e nosso espírito, estão
de tal modo gangrenados de mentira que contaminam até as instituições e os
homens que desejariam ficar indenes e os leva a recorrer, na falta de coisa
melhor, à mentira para lutar contra a mentira. Mentira na filosofia política
que pretende sub-repticiamente substituir o espírito pela matéria, a qualidade
pela quantidade, o Criador pela criatura, a razão por uma cega aritmética.
Mentira da linguagem política e especialmente do calão parlamentar, tornado
anfibológico e quase hermético e do qual nenhuma só palavra, notava Péguy,
conservou sua significação natural. Mentira nas instituições políticas construídas “en porte à faux” sobre fundamentos instáveis e
ruinosos. Mentira em particular na Soberania do Povo, que desfigura a
autoridade, de que faz uma escrava e o comando de que faz um despojo. Mentira
na justiça que se torna a serva dócil da iniquidade triunfante, sem se
preocupar nem mesmo com a evidência, prostituindo-se aos poderosos do dia e
pretendendo impassivelmente converter a culpabilidade em inocência, a inocência
em culpabilidade. Mentira na polícia que perverte a moralidade pública, que tem
a missão de defender. Mentira na repressão e na vingança que se escondem sob a
máscara da legalidade e na sombra dos cárceres. Mentira na interpretação do Bem
Comum e do Interesse Geral, que já não são invocados senão para servir
interesses de partidos, ou que se reduz a uma concepção sórdida, baixamente
utilitária, que se confunde voluntariamente com o bem estar, as comodidades
materiais e as satisfações dadas aos instintos gozadores das multidões. Mentira
da lei, que já não é a ordem racional, imposta pelo bem de todos, mas a simples
expressão, disfarçada em direito formal, da vontade do mais forte e entregue
assim a uma perpétua instabilidade, a uma permanente injustiça. Mentira na
liberdade, onde já não se quer ver o que ela é, isto é, uma lenta e penosa conquista
e a faculdade sublime de ser causa, mas um dom gratuito e congenital e que se
transforma em tributária do mal, em dissolvente da autoridade, em negação da
responsabilidade. Mentira na Igualdade, em nome da qual se tende estupidamente
dar a todos os homens, direitos, estatutos e satisfações uniformes. Mentira na
Fraternidade, que se orgulha de tornar inútil a Caridade e nada mais faz do que
renovar incessantemente o drama de Caim e Abel. Mentira na Moral, privada de
sua base e de seu fim e tornada puramente fictícia. Mentira no hino universal
entoado à apoteose da Pessoa Humana, cuja dignidade nunca foi tão desconhecida.
Mentira na educação, que não passa d’um entulho, sem nenhuma ação formadora e
deixa portanto de merecer o nome que se lhe atribui. Mentira no crédito que o
Estado confunde abertamente com a espoliação e o roubo. Mentira na moeda, cujo
valor real está num desequilíbrio cada vez mais completo com o valor aparente e
tende irresistivelmente para o zero. Mentira, direi eu, até nas orações que
certos políticos, que se pretendem religiosos, dirigem publicamente aos Céus
pela salvação de um Estado que é a negação e a violação dos direitos divinos,
pois, segundo a grande palavra de Bossuet, Deus se ri das suplicas que se
elevam até Ele para desviar as desgraças publicas, quando não nos opomos ao que
se faz para atraí-las. Mentira, para coroar o todo, no comportamento dos
melhores que julgam, sob o pretexto de evitar um mal maior, dever pactuar com o
falso, arvorar opiniões que não são as suas e dizer-se o que não são. Mentira,
sim! Até na verdade, à qual se incorpora sistematicamente uma parte de erro,
mentira no erro o qual se incorpora sistematicamente uma parte de verdade,
alienando assim o espírito dos homens, de tal modo que aos olhos de grande
número elas se tornam praticamente indiscerníveis, intercambiáveis. Perversão e
confusão, tornadas tais que, mais cínico do que Pôncio Pilatos, um parlamentar
francês, sem suscitar reprovação alguma, pode proclamar: ‘Mais vale unir-se ao
erro do que dividir-se na verdade’.
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Marcel de la BIGNE DE VILLENEUVE. Satan en la Ciudad, Buenos Aires: Nuevo Orden.