sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A PROPÓSITO DA ORDEM NATURAL

“E, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães. Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces com o teu pé em alguma pedra. Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus. Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares.
Então disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás”. (S. Mateus IV: 3-10).
Tal foi o desafio lançado contra o Senhor no inicio de sua vida pública. Triplo desafio que alça, ainda hoje sobre a Igreja, amoldado às variantes de tempo e lugar, mas conservando sempre suas características essenciais, a unidade de sua trama e sua pérfida finalidade. Tripla tentação que afeta os homens em sua moral pessoal e no ambiento de suas relações sociais, politicas e jurídicas, incitando-os para o exclusivo cuidado das coisas criadas e sensíveis, subvertendo a ordem natural e, definitivamente, afastando-os de Deus.
Mas o que propõe o tentador? Em cada uma das três tentações sugere uma ação precisa, concreta, diferente. Mas as três atacam decididamente a ordem natural, o plano do Criador, a hierarquia dos bens e valores, as leis da física e da ética, a que deve ajustar-se a vida dos homens. As três, gradual e hipocritamente, desembocam no que se devia entrever com suficiente nitidez na terceira: a aversão a Deus, implícita naquela “se, prostrado, me adorares”.
O Senhor poderia ter transformado as pedras em pães. Porque não? Mas preferiu a ordenada produção do sustento, com todas suas implicações morais, econômicas, jurídicas, com a conseguinte divisão de tarefas e funções, os trabalhos de cultivação da terra, da plantação das sementes, das colheitas e até de sua comercialização.... tudo está no plano do Criador. Porque haveria de mudar? Quis o Senhor, ainda, nos ensinar a não caminharmos desenfreadamente em busca das coisas que se consomem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.
Poderia da mesma forma, atirar-se do pináculo do templo, deixando absortos todos os habitantes de Jerusalém. Não quis fazê-lo, como não quereria depois descer da Cruz para provar sua divindade ante os blasfemadores que o injuriavam. Preferiu que os homens se valessem do franco uso do seu livre arbitro, que se aproximassem d’Ele pela Fé e se valessem, também, de sua razão discursiva, iluminada pela graça, em vez anulá-los sob o peso de uma evidencia cabal, impropria da condição humana e incompatível com uma adesão fundada no mais puro respeito da Verdade. Poderia finalmente aceitar a realidade da dominação demoníaca sobre as nações, e, em um instante, assumir a plenitude da soberania universal até sobre os mais perversos que lhe seguiriam, exultante como o seu caudilho e seu cumplice. Preferiu, em troca, deixar os homens livres para que o obedecesse e servisse por amor, embora isso equivalesse a submeter-se ao império dos malvados, às vexações criminosas e injustas, e a aceitar das mãos deles a morte e a Cruz.
Mas, sem perscrutarmos o profundo tema teológico suscitado no texto evangélico, queríamos apenas assinalar sua relevância no campo do direito e da vida social, tanto pelo que atine à sanção, aplicação e interpretação das leis, como ao exercício do governo e aos objetivos da política. Porque, a despeito de necessárias distinções e da sideral distancia que vai do espiritual ao temporal, cabe afirmar que, ainda quando não seja admissível falar de pecados sociais, distintos dos pecados pessoais; convém, em troca, não perder de vista que, no fim das contas, se trata do comportamento humano, regido por normas e princípios constantes e analogamente validos nos diversos planos em que o homem atua.
É assim que os três princípios fundamentais do ordenamento jurídico da vida em sociedade: honeste vivere, alterum non laedere, Suum cuique tribuere, alcançam sua plenitude quando os homens compreendem e vivem em sua dimensão social as repostas do Salvador às sugestões diabólicas. Sugestões que reúnem os elementos característicos de todo pecado: 'conversio ad creaturas, inordinatio, aversio a Deo', que, por certo, também afetam as comunidades temporais.
Na realidade é difícil ocultar a maldade implícita no amor imoderado das coisas sensíveis, e impossível é negar a perfídia do ateísmo. Por isso o demônio, que é sutil, costuma recorrer ao ardil de atacar a ordem natural, dissimulando sua perversidade. Com não pouca frequência promove o desconhecimento desta ordem, conseguindo que, disfarçado de valoração do espiritual e ainda do sobrenatural, se lhe retire a importância ou se prescinda aberta dela. Dessa forma consegue, por um cômodo atalho, desencadear o consumismo e a apostasia.... tal como propusera no deserto.
Não parece, pois, estranho que de alguma maneira as sociedades humanas tenham de padecer neste mundo males ligeiramente semelhantes às penas eternas que todo pecador merece: uma corrosiva e permanente destruição e bancarrota, como castigo do imoderado apego às coisas inferiores que implica o consumismo desenfreado; uma variadíssima gama de perturbações, moléstias e incômodos... e uma mutua e intrínseca belicosidade, merecidas pelo desprezo da ordem; e, finalmente, a perda efetiva da divina presença do Reinado Social de Cristo, como justíssima sanção do amargo e ímpio ateísmo professado.
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Santiago de ESTRADA. A Proposito del Orden Natural, In. Prudentia Iuris – Revista da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Pontifica Universidade Católica Argentina Santa Maria de los Buenos Aires, Dezembro de 1980, pp. 3-4.

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