“E,
chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas
pedras se tornem em pães. Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só
de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Então o
diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e
disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está
escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos,
Para que nunca tropeces com o teu pé em alguma pedra. Disse-lhe Jesus: Também
está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus. Novamente o transportou o diabo a
um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E
disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares.
Então
disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus
adorarás, e só a ele servirás”. (S. Mateus IV: 3-10).
Tal foi o desafio lançado contra o
Senhor no inicio de sua vida pública. Triplo desafio que alça, ainda hoje sobre
a Igreja, amoldado às variantes de tempo e lugar, mas conservando sempre suas
características essenciais, a unidade de sua trama e sua pérfida finalidade.
Tripla tentação que afeta os homens em sua moral pessoal e no ambiento de suas relações
sociais, politicas e jurídicas, incitando-os para o exclusivo cuidado das
coisas criadas e sensíveis, subvertendo a ordem natural e, definitivamente,
afastando-os de Deus.
Mas o que propõe o tentador? Em cada
uma das três tentações sugere uma ação precisa, concreta, diferente. Mas as
três atacam decididamente a ordem natural, o plano do Criador, a hierarquia dos
bens e valores, as leis da física e da ética, a que deve ajustar-se a vida dos
homens. As três, gradual e hipocritamente, desembocam no que se devia entrever
com suficiente nitidez na terceira: a aversão a Deus, implícita naquela “se,
prostrado, me adorares”.
O Senhor poderia ter transformado as
pedras em pães. Porque não? Mas preferiu a ordenada produção do sustento, com
todas suas implicações morais, econômicas, jurídicas, com a conseguinte divisão
de tarefas e funções, os trabalhos de cultivação da terra, da plantação das
sementes, das colheitas e até de sua comercialização.... tudo está no plano do
Criador. Porque haveria de mudar? Quis o Senhor, ainda, nos ensinar a não
caminharmos desenfreadamente em busca das coisas que se consomem, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus.
Poderia da mesma forma, atirar-se do
pináculo do templo, deixando absortos todos os habitantes de Jerusalém. Não
quis fazê-lo, como não quereria depois descer da Cruz para provar sua divindade
ante os blasfemadores que o injuriavam. Preferiu que os homens se valessem do
franco uso do seu livre arbitro, que se aproximassem d’Ele pela Fé e se
valessem, também, de sua razão discursiva, iluminada pela graça, em vez
anulá-los sob o peso de uma evidencia cabal, impropria da condição humana e incompatível
com uma adesão fundada no mais puro respeito da Verdade. Poderia finalmente
aceitar a realidade da dominação demoníaca sobre as nações, e, em um instante,
assumir a plenitude da soberania universal até sobre os mais perversos que lhe
seguiriam, exultante como o seu caudilho e seu cumplice. Preferiu, em troca,
deixar os homens livres para que o obedecesse e servisse por amor, embora isso
equivalesse a submeter-se ao império dos malvados, às vexações criminosas e
injustas, e a aceitar das mãos deles a morte e a Cruz.
Mas, sem perscrutarmos o profundo
tema teológico suscitado no texto evangélico, queríamos apenas assinalar sua relevância
no campo do direito e da vida social, tanto pelo que atine à sanção, aplicação
e interpretação das leis, como ao exercício do governo e aos objetivos da
política. Porque, a despeito de necessárias distinções e da sideral distancia
que vai do espiritual ao temporal, cabe afirmar que, ainda quando não seja
admissível falar de pecados sociais, distintos dos pecados pessoais; convém, em
troca, não perder de vista que, no fim das contas, se trata do comportamento
humano, regido por normas e princípios constantes e analogamente validos nos diversos
planos em que o homem atua.
É assim que os três princípios fundamentais
do ordenamento jurídico da vida em sociedade: honeste vivere, alterum non laedere, Suum cuique tribuere, alcançam
sua plenitude quando os homens compreendem e vivem em sua dimensão social as
repostas do Salvador às sugestões diabólicas. Sugestões que reúnem os elementos
característicos de todo pecado: 'conversio
ad creaturas, inordinatio, aversio a Deo', que, por certo, também afetam as comunidades temporais.
Na realidade é difícil ocultar a
maldade implícita no amor imoderado das coisas sensíveis, e impossível é negar
a perfídia do ateísmo. Por isso o demônio, que é sutil, costuma recorrer ao
ardil de atacar a ordem natural, dissimulando sua perversidade. Com não pouca frequência
promove o desconhecimento desta ordem, conseguindo que, disfarçado de valoração
do espiritual e ainda do sobrenatural, se lhe retire a importância ou se
prescinda aberta dela. Dessa forma consegue, por um cômodo atalho, desencadear
o consumismo e a apostasia.... tal como propusera no deserto.
Não parece, pois, estranho que de
alguma maneira as sociedades humanas tenham de padecer neste mundo males
ligeiramente semelhantes às penas eternas que todo pecador merece: uma corrosiva
e permanente destruição e bancarrota, como castigo do imoderado apego às coisas
inferiores que implica o consumismo desenfreado; uma variadíssima gama de perturbações,
moléstias e incômodos... e uma mutua e intrínseca belicosidade, merecidas pelo
desprezo da ordem; e, finalmente, a perda efetiva da divina presença do Reinado
Social de Cristo, como justíssima sanção do amargo e ímpio ateísmo professado.
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Santiago de ESTRADA. A Proposito del Orden Natural, In. Prudentia Iuris – Revista da Faculdade
de Direito e Ciências Políticas da Pontifica Universidade Católica Argentina Santa
Maria de los Buenos Aires, Dezembro de 1980, pp. 3-4.