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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O CAVALEIRO CRISTÃO

Os séculos de Reconquista impregnou de religiosidade até a medula da alma do Cavaleiro cristão; infundindo-lhe, ademais, a convicção de que a vida é, com efeito, luta; a luta por impor à realidade circundante uma forma boa, uma maneira de ser excelente, que por si mesma a realidade não teria. O Cavaleiro cristão é, pois, essencialmente um paladino defensor de uma causa, desfazedor de ofensas e injustiças, que vai pelo mundo subjugando toda realidade - coisas e pessoas - ao imperativo dos valores supremos, incondicionais. E o que o caracteriza e o designa como paladino não é apenas sua condição de esforçado propugnador do bem, mas, sobretudo, o método direto com que procura o bem. O Cavaleiro cristão não tem paciência, não aguarda, não espera; não busca, para converter em boa a realidade má, subterfúgios que de um modo, por assim dizer, mecânico, metódico e natural, produza a desejada modificação da realidade. O Cavaleiro cristão acredita cegamente na virtude e eficácia imediata de sua própria vontade e resolução esforçada para transformar as coisas. Outras mentalidades mais lentas, menos executivas e mais propensas à acatar o sistema das leis naturais, pensarão que toda modificação da realidade pelo homem requer tempo, exige primeiro uma submissão aparente à legalidade física e material, até descobrir, pouco a pouco, as conjunturas pelas quais se possa obrigar a natureza a assumir a forma e função determinada pelo pensamento humano do melhor.  Essa maneira de operar sobre as coisas reais postula, no entanto, a necessidade de esperar; requer tempo e implica a ideia de uma evolução lenta no processo de modificação das coisas pelo homem. Mas o método evolutivo e paciente de influir sobre a realidade repugna o Cavaleiro cristão, que quer agora mesmo e sem mais tardar, pelo só Império de sua vontade e poder, que o mal desapareça e o bem prepondere, e que tudo se submeta à formula contundente de suas palavras. Há na mentalidade do paladino ao mesmo tempo otimismo e impaciência; otimismo como Fé absoluta no poder moral da vontade; impaciência como demanda da transformação imediata e total, não gradual e progressiva. Para o Cavaleiro cristão, em suma, o ideal moral não é a norma a que submeta um processo de transformação lento e progressivo, mas o imperativo de realização imediata, completa e perfeita. Essa maneira de sentir e de pensar implica, por sua vez, certo desprezo da realidade intrínseca; não só no sentido de considerá-la má ou indiferente, mas também no sentido de tê-la por facilmente vencível, transformável, dominável. A matéria, o corpo, os corpos estão ou devem estar sob as ordens do espírito; se se negam obedecer ao espírito, é preciso obrigar-lhes, pela violência, se for necessário, ou pela penitência ou pelo castigo sobre si mesmo e sobre os demais. O Cavaleiro cristão não duvida poder transformar a realidade conforme os imperativos das preferencias absolutas; justamente porque despreza a realidade e a considera incapaz de verdadeira e autônoma existência. A vida, pois, toda a vida deverá consistir essencialmente em uma constante emenda das coisas conforme os ditames do melhor, do mais perfeito.
Agora, em que consiste o melhor, o mais perfeito? Quem diz ao Cavaleiro cristão o que tem que preferir, o que deve fazer, a lei a que deve submeter os demais e a si mesmo? Agora chegamos a outro ponto capital de nossa análise. Esses valores, essas preferências absolutas a que o Cavaleiro cristão deve submeter aos demais e submete a si mesmo, não procedem de nenhum código escrito, nem de costumes, nem de convenções humanas; procedem exclusivamente da própria consciência do Cavaleiro. Não estão "ai", como as leis públicas; mas florescem no coração do Cavaleiro, o qual não conhece outra legalidade que a lei de Deus e sua própria convicção. O Cavaleiro cristão é paladino de uma causa que se cifra em Deus e sua consciência. Não acata leis que não sejam "suas" leis; não se rege por outro faro que a luz acesa em seu próprio peito....


Manuel García MORENTE. “El caballero Cristiano” (Conferência pronunciada no dia 2 de junho de 1938, na Associação de Amigos da Arte de Buenos Aires), em Idea de la Hispanidad, Buenos Aires: Espasa-Calpe S. A., 1938.