segunda-feira, 22 de maio de 2017

O CÍRCULO ÍNTIMO



Quando eu era ainda criança, costumava frequentemente ir até à beira de um tranquilo remanso e atirar pedras à água. Nunca me fartava de olhar com admiração para a maneira como cada pequeno circulo produzia outro maior até que o último batia nos bordos e pouco a pouco se desfazia, tornando a água à sua primitiva paz.
Qual é o círculo mais intimo da vida, aquele cuja vibração se nota nó lugar mais remoto? A hora da família começa quando a sagrada união de homem e mulher começa a florescer. Também pertencem à família os avós e os antepassados, mas são apenas o segundo e terceiro círculos que as ondas da vida fizeram.
Aqui somente falamos do círculo íntimo.
Neste círculo interior atinge a mulher a sua mais alta dignidade e a sua última plenitude, torna-se uma nova “mãe da vida”! A sua dignidade maternal é o mais valioso tesouro desse círculo íntimo. O próprio Cristo se encontra imerso nele. Antes de começar a difundir a palavra divina, antes de se entregar ao sacrifício redentor da cruz, e de estabelecer a sua Igreja, preferiu o silencioso lar de Nazaré. Os mais maravilhosos acontecimentos da vida de Cristo não são as grandes curas ou a expulsão dos demônios; mais maravilhosa ainda que a ressurreição de Lázaro, é a vida oculta no círculo íntimo da família de Nazaré.
Nos milagres manifestava-se a divindade, mas aqui é um homem entre os homens.

A SAGRADA FAMÍLIA 

Debrucemo-nos sobre a figura de José, um homem completo, de quem diz a Escritura: “era um homem justo”. Olhemos para Maria, a mãe sem pecado, a cheia de graça. Aí está o Filho que traz consigo a plenitude divina do Pai. E o céu contemplava esta criança de Nazaré: “O Pai punha nele as suas complacências, e ele crescia em idade, em graça e em sabedoria diante de Deus e dos homens”. Era uma trindade santa entre os homens, imagem do círculo íntimo de Deus; família verdadeiramente sagrada, modelo dessa trindade humana feita de pai, mãe e filho.
Foi este o motivo por que a Igreja incluiu a festa da Sagrada Família no ciclo dos seus mistérios. Todos os anos no domingo seguinte ao dos Reis, continuamos a celebrar a memória desta santa trindade humana.
Enquanto o mundo existir, nenhuma outra família poderá igualar-se a esta, em beleza e virtude, em prosperidade e paz.
Não se trata contudo de um idílio romântico, irreal, alheio à vida. Porventura não foi esta família
a realização de um ideal que Deus pediu aos homens?
José foi mergulhado na noite dessa dúvida que pairava sobre a sua esposa. Os primeiros dias do jovem casal estão rodeados de preocupações, e as etapas da sua fuga são antes estações do amor e da inquietação.
Sobre Maria pesa a incerteza dó destino futuro do seu filho: “uma espada atravessará a tua alma”.
E quando o Filho foi conduzido ao Templo, aos doze anos, todas as feridas tornaram a abrir-se. No entanto, apesar destes perigos, ou melhor, por meio dessas provações, a família de Nazaré pôde vir a ser o protótipo e a imagem sagrada de todas as famílias.

O JARDIM DA PANÓNIA

No fulcro da história da Hungria, está inscrito o nome de outra família verdadeiramente santa. No começo do ano mil, quis dar-nos o Senhor o primeiro modelo de uma santa família húngara. Nasceram flores no jardim da Panónia: Estevão, o rei santo, pai e apóstolo do seu povo; Gisela, que com mão prudente educou os filhos e cuidou solicitamente do jardim, para que pudessem crescer flores impolutas. O primeiro fruto desta nobre estirpe foi Emérico, o santo, o orgulho da Casa de Arpad, o porta-estandarte dos altos ideais da juventude panónia.
“A mão do Senhor o realizou”. Estas duas famílias são para nós modelo e escola. A essa escola de Nazaré e a esse jardim da Panónia devem ir os pais, as mães e os filhos; e conseguirão valor e fortaleza, quando forem iluminados pela luz e pela força de José ou de Estevão, de Santa Gisela ou de Maria, a Virgem Santíssima.
Quando o próprio Deus estende a sua mão sobre alguma coisa, os homens devem prestar uma atenção cheia de respeito. Nos primórdios da humanidade Deus criou a família, e esse círculo íntimo que recebeu a vida de Deus, deve voltar a encontrar nele o seu sentido.
A História ensina - e a vida dos povos confirma o seu testemunho - que a família é a célula originária das nações. Só o desvario mental de Rousseau substituiu essa unidade de três pela unidade solitária dos indivíduos autônomos: despedaçou a humanidade e os povos em milhares e milhões de átomos isolados.
Uma ciência mais sensata regressa agora à doutrina de que a família é a célula e a forma primitiva de toda a comunidade humana. Ainda que nos encontremos numa grande comunidade social, sempre a família é a nossa primeira pátria e, como diz Sigrid Undset, o ambiente essencial de toda a cultura e de toda a religião.
Só um cego pode deixar de ver que a família é o elemento de conservação do gênero humano. O fim em vista é que nasçam novos homens, e que os recém-nascidos possam atingir a sua maturidade humana.
É por isso que cada família tem a sua alma própria, as suas ambições e os seus desejos, as suas alegrias e as suas lutas, o seu calor e a sua temperatura próprias, a sua história e a sua linguagem.
O amor e a autoridade estão no âmago da família.
O pai e a mãe são os dois fogos que alimentam esse círculo íntimo, e o amor e a autoridade conseguem realizar a unidade de todos. Entre pais e filhos aparece um vínculo poderoso, a pietas, o amor reverencial, desinteressado e recíproco.
A vida na intimidade desse pequeno círculo constitui a felicidade de todos. Para o pai, é um mundo inteiramente submetido ao seu domínio; para a mãe, é a plenitude da dignidade maternal; para o filho, representa o carinho, o amparo e a educação. E os povos tiram dessa fonte as forças de uma nova juventude.

UMA HISTÓRIA DE PIRATAS

A família possui um extraordinário poder de transformação. O esposo e a esposa que começam a entrar nela, são atraídos pelos fortes vínculos do amor e, pouco a pouco, sofrem uma profunda transformação, de tal modo que o fi1ho é já um filho desse lar.
Daí deriva o fato de que a família imprima nos que a compõem um cunho característico.
Uma velha história de piratas pode servir-nos como um dos mais curiosos exemplos desse poder de transformação. Nos tempos posteriores a Colombo, os mares eram o campo ideal para os piratas que apareciam, quer em Gibraltar, quer nas Índias ou no canal do Panamá, tornando perigosa a navegação. Por acaso, um deles extraviou-se perto da Martinica e quis confessar-se a um missionário, o padre Labat. Um dia, este padre foi ao encontro do chefe dos piratas e cominou que pusesse termo a esse gênero de vida, prometendo que lhes seriam dados lar, casas e terras que pudessem cultivar. Assim se fez, e houve mulheres que quiseram unir o seu destino ao destes homens.
Os selvagens piratas do mar tornaram-se pacíficos camponeses, e o fogo tranquilo do lar domou a ferocidade daqueles salteadores, que vieram a ser, ao longo da história, um firme esteio da Igreja católica naqueles lugares. O exemplo mostra a profunda verdade contida nas palavras do bispo Glatlfelder: “O fundamento mais sagrado e indestrutível da civilização humana são o altar e a família”.
Nem sequer os próprios membros da família suspeitam que nesse círculo, tão pequeno e frequentemente tão despretencioso, se encerra a felicidade e a paz e que nele se encontra a raiz da nação, do Estado e de toda a humanidade. Representa por isso a maior riqueza de todo o mundo. Basta a decadência da família para que se gerem autênticas e terríveis revoluções, e quando se apaga o fogo sagrado do lar, a humanidade precipita-se nas mais 1profundas trevas da barbárie, ao anularem-se os mais firmes fundamentos da vida.
Ainda que mudem os governos e se afundem os tronos e desapareçam as culturas, a família permanece incomovível através dos tempos. Todas as forças negativas que existiram ao longo da História encontraram a sua origem, em maior ou menor grau, na decomposição da família. Por outro lado, basta uma só família, ainda que não esteja excessivamente bem constituída, para haver uma poderosa força de unidade social.
É sempre ela que defende o direito e os bons costumes e transmite a herança dos antepassados às gerações vindouras.

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Cardeal MINDSZENTY. A Mãe, 2ª ed., Lisboa: Aster, pp. 43-48.

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