domingo, 12 de fevereiro de 2017

Os Apóstolos das Coisas (Canto dos Lavradores)

(Ao Pequito Rebelo)

NÓS somos os Apóstolos das Coisas, e quando lhe pregamos o amor,
Elas entendem-nos, porque florescem.
O ar bom que se respira somos nós que o criamos,
Porque temos o poder de mudar os climas.
E as nuvens do céu obedecem-nos, como ovelhas mansas, nos prados.

Nós chamamos ao bom caminho, desviando-os do leito inútil,
Os rios maus e transviados, dirigindo-os no dever de regar os campos.
Nós damos de beber a cada folha um trago de luz, a cada raiz uma sede de água,

E choramos sobre as nossas culpas, se o verão é seco e o outono gelado...

Nós temperamos os gelos das madrugadas nos suores das nossas frontes.
 E cada arvore que plantamos é um ramo erguido a Deus,
Que, em paga das flores, nos dá os frutos.

E porque assim somos, tudo nos louva e engrandece.
Os passarinhos voam, em cruz, a abençoar-nos a sementeira,
As suas vozes apenas dizem: “lavrai, regai, criai...”.
E quando alegremente poisam na terra e nos ramos,
E a relha do arado faísca ao sol, alumiando o rego,
Debruçam-se, enternecidos, a ver as delicias que lhe semeamos.

Depois, quando as Coisas do campo nascem e crescem
Sorrimos-lhes, contentes, como a filhos no berço.
E se uma seara adoece, sobre as espigas mortas, por terra,
Vertemos lagrimas, a sofrer, como numa sepultura.
E para salvarmos as plantas da trovoada,
Quantas vezes damos a vida por elas!...

E o nosso bendito amor pela terra nunca descança,
“Porque as leiras virgens, sem fruto, são terras de perdição,
Onde a luz do céu morre sempre de tristeza,

Como a santa graça de Deus, no coração do ímpio.
E, por isso, deixamos ao filhos este preceito:
“Cavai a terra, fecundai-a, porque Deus andará triste. Enquanto na terra houver uma leira sem fruto.

E somos nós, que, a semear, embelezamos e salvamos a Vida!...

Venham até nós os sábios e as escolas, os filósofos e os artistas,
Porque somos pobrezinhos e sustentamos o mundo,
Não conhecemos as Letras e temos a Ciência da Vida,
Não aprendemos a Arte e somos os pintores da Terra!

As nossas mãos são duras e feias, mas são elas que trabalham a luz do sol,
Donde tecem a seda das rosas e o oiro das espigas.
São toscas as nossas falas, mas é entre nós que os passarinhos gostam de cantar,
É bravio o nosso gênio e mudamos o toiro bravo em cordeiro.
É rude o nosso convívio e Deus anda a toda a hora conosco.

Os nossos pés são pesados de abrirem as veredas
Que levam a semente onde as estradas não chegam;
E estas veredas brancas dos campos, cintilando ao sol,
São os caminhos dos Apóstolos da Natureza.

E estes Apóstolos, a quem Deus sorri, somos nós,
Que logo de pequeninos, mal erguendo a enxada,
Recebemos a graça e o poder de criar as Coisas.
E pela vida fora, ao começar os trabalhos de cada dia,
Traçamos, da fronte ao peito, a cruz de uma oração.

Para que todas as Coisas nasçam e se criem,
Em nome do Padre, do filho e do Espirito Santo.

E porque assim somos, gloriosos e simples,
Bendito seja Deus que nos fez lavradores,
Porque muito nos quere.
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NUNO DE MONTEMÓR, extraído do livro Amor de Deus e da Terra, e publicado na revista Ordem Nova, Ano 1, Volume 1, LISBOA 1926, pp. 23-25.


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