sábado, 3 de maio de 2014

ALGUMAS PÁGINAS DE PÉGUY SOBRE O TRABALHO (I)

Quem haveria de dizer que nós fomos criados no meio de um povo alegre? Naquele tempo a oficina era o lugar da terra em que os homens são felizes. Hoje a oficina é o lugar da terra em que os homens se recriminam, se odeiam e se batem; se matam. No meu tempo todo mundo cantava (exceto eu, mas eu já era indigno de ser daquele tempo). Na maior parte das corporações contava-se. Hoje se resmunga. Naquele tempo não se ganhava nada, por assim dizer. Os salários eram de uma pequenez que não se faz ideia. E, no entanto, todo mundo respira. Havia nas mais humildes casas uma espécie de facilidade cuja lembrança se perdeu. Na verdade no se calculava. E não era preciso calcular. Podia-se educar os filhos. E se educavam. Não havia esse estrangulamento econômico de hoje, essa estrangulação científica, fria, retangular, regular, nítida, caprichada, sem uma emenda, implacável, sóbria, comum, constante, cômoda como uma virtude, da qual não há nada mais a dizer, e na qual o estrangulador está tão evidentemente sem razão. Não se saberá nunca até onde ia a decência e a justeza de alma desse povo; uma tal firmeza, uma tal cultura profunda nunca mais se encontrará. Nem tamanha elegância e precaução no falar. Aquela gente se envergonharia de nosso melhor tom de hoje, que é o tom burguês. E hoje todo mundo é burguês. Quem poderia crer, e isso vem ainda a dar no mesmo, que nós conhecemos operários que tinham vontade de trabalhar. Só se pensava em trabalhar. Nós conhecemos operários que de manhã, não penavam senão em trabalhar. Eles se levantavam de manhã (e a que horas!) e cantavam à ideia de partir para o trabalho. Às onze horas cantavam quando iam à sopa. E sempre Victor Hugo no fim de contas; e é sempre a Victor Hugo que é preciso voltar: Eles iam, eles cantavam... Trabalhar era a sua própria alegria, a raiz profunda do seu ser. E a razão do seu ser. Havia uma honra incrível do trabalho, a mais vela de todas as honras, a mais cristã, a única talvez que tenha sentido. É por isto, por exemplo, que eu digo que um livre-pensador daquele tempo era mais cristão que um católico dos nossos dias. Porque um católico dos nossos dias é forçosamente um burguês. E hoje em dia todo mundo é burguês.

Charles PÉGUY (1873-1914). in Revista A Ordem, n. 06, Vol. XXXVII,  junho de 1947, p. 31-32.

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