Resenha do livro "El silencio de Dios" do
saudoso filósofo espanhol, Rafael Gambra
(Editorial Prensa Española, Madrid, 1968. Prólogo de Gustave Thibon), elaborada por José Pedro Galvão de Sousa.
Deixemos falar o próprio autor. Numa entrevista dada a propósito deste
livro e publicada na revista Roca Viva, assim justifica Rafael Gambra o título
do mesmo: "O título desse meu último
livro faz referência ao silêncio que Cristo manteve diante de seus acusadores e
diante dos que em sua vida humana lhe falaram para tentá-lo. Alude também ao
silêncio com que Deus responde aos mais duros transes da vida espiritual
humana, e a como o homem deve saber escutar e interpretar esse silêncio na
profundidade da fé. Refere-se, enfim, à duríssima prova que para a
sobrevivência da fé e da Cristandade está supondo isso que se chame hoje ‘experiência
pós-conciliar’', à angústia daqueles que creem hoje perder a fé ou a esperança,
enquanto Deus, uma vez mais, responde com o silêncio da sua dor''.
Mostra-nos o livro como nascem as civilizações históricas, mediante uma
re-ligação transcendente, isto é, sobre bases sacralizadas, e como perecem por
uma dissolução interior, decorrente de lenta erosão provocada pelo
racionalismo, negador daquelas bases. Neste sentido, toma como ponto de partida
o duplo conceito de engagement e apprivoisement, de Saint-Exupéry, para
fazer o processo, à luz dessas noções, da civilização moderna tecnocratizada e
paulatinamente desumanizada. Desligado de suas bases transcendentes, o homem
acaba por se tornar também desligado dos "compromissos''
que o fazem participar da vida social no seu sentido mais profundo - o
comunitário - e deixa de "domesticar'' os seres dos reinos inferiores que
o cercam, tornando-se um estrangeiro no seu próprio mundo. Daí o fenômeno da
massificação e as concepções mecanicistas do Estado de direito do liberalismo e
do totalitarismo nivelador.
Na visão realista de Aristóteles, indivíduo e sociedade são "aspectos de um só ser: o homem
concreto, que é ao mesmo tempo individual e social (natureza individual com
radical tendência à sociabilidade), como demonstra o fato de que nunca se
conheceram homens sem viver em sociedade, nem sociedade alguma que absorva a
individualidade como nos grupos de animais gregários (formigueiros, enxames)''.
O abstracionismo racionalista gerou primeiro a idéia do homem fora da
sociedade, de Rousseau, inspirando o constitucionalismo liberal, e depois a
concepção da sociedade absorvendo os homens, característica do Estado
totalitário. Tanto para o liberalismo quanto para o socialismo, a sociedade
passa a ser algo de extrínseco para o homem, sendo que no caso do socialismo o
Estado a constrói como "um
habitáculo técnico forjado mediante a organização e a adaptação
dirigidas". A organização do Estado liberal cifra-se a uma técnica de
convivência das liberdades, e a do Estado totalitário consiste no planejamento
dos serviços e dos seguros abrangendo toda a via humana.
"Em face de tais concepções de fundo racionalista"
- escreve Gambra - "a autêntica reivindicação humana se expressaria num impulso que,
segundo seus diversos aspectos, poderíamos chamar corporativismo,
institucionalismo ou comunitarismo histórico. A ordem social não se cifraria
assim em criar ou manter um poder racional e neutro que vele só pela liberdade
dos indivíduos ou que os proveja de meios e seguros. Mas, pelo contrário,
consistiria em recuperar mediante o compromisso e a domesticação o universo
existencial de grupos e de instituições capazes de conferir sentido histórico,
cordial, à vida coletiva dos homens, e ao mesmo tempo defendê-la das
supercriações do Estado racionalista planificador”. Assim, pôde escrever
Camus num de seus últimos livros: "A
verdadeira libertação do homem se apoiou sempre nas realidades mais concretas:
a família, a profissão, o município, que fazem transparecer em seus limites o
ser, o coração vivo das coisas e dos homens". Tal, enfim, a idéia de
Saint-Exupéry, que concebe a cidade como o navio ou a mansão dos homens, "comunidade de laços, de recordações,
de esperanças, onde cada passo e cada tempo tem sentido".
"Compromisso,
domesticação (apprivoisement) e corporativismo histórico vêm a ser assim os
correlatos dialéticos do que no século racional foram o individualismo, a atitude
estética e o liberalismo".
São sempre estas as idéias que dirigem o fio das reflexões contida no
presente volume: "Na entrega
(compromisso) e no amor, o homem cria sua própria personalidade e seu mundo
próprio. Na sua sêde ou seu fervor, e na domesticação de um mundo valioso e
sagrado para êle, está o verdadeiro homem e o sentido de seus dias".
Belas páginas sobre a "aceleração
da história" - tão bem estudada por Daniel Halévy e por Marcel de
Corte - e um capítulo impressionante sobre "a
jogralizaçao da fé", comentado estas palavras de João XXIII: "Não é culpado somente quem de modo
deliberado desfigura a verdade, mas igualmente quem, para estar "em
dia", a atraiçoa com uma atitude ambígua".
Em seu prólogo, Gustave Thibon assim se expressa: "Num século em que reina o conformismo do absurdo e da desordem,
em que o ídolo da revolução permanente se converteu em centro de atração para
os rebanhos de escravos teledirigidos, nada há de mais novo e mais insólito do
que pregar o retorno às fontes e defender a natureza e a tradição".
Essa pregação tem sido uma constante na vida de Rafael Gambra. Em El silencio de Dios ele a retoma, em
meio à amargura da hora presente, procurando sobrepor-se ao derrotismo e "esperar contra toda a esperança",
segundo o conselho do Apóstolo, dando um brado veemente entre os "arautos e forjadores de uma futura
reconciliação do homem com a Cidade; uma Cidade renovada cujos fundamentos
re-ligados sejam aceitos na humildade, no amor, e nunca mais no orgulho
racionalista dos "desmitificadores" da fé".
Clama, ne cesses... Este livro - diz ainda Thibon - é "um grito de
alarma profético". A nós que não queremos fugir aos
"compromissos" e ao apprivoisement,
que queremos preservar a natureza e salvar os valores da tradição, cumpre-nos
gritar até que a nossa voz se imponha e faça calar o linguajar bárbaro dos
slogans condicionadores do pensamento teleguiado.
E um dia Deus romperá o seu silêncio.
José Pedro Galvão de Sousa.
Revista "Hora Presente" -
Ano I - Janeiro/Fevereiro 1969 - Número 3