quinta-feira, 10 de setembro de 2015

PORQUE DEUS SE CALA

Resenha do livro "El silencio de Dios" do saudoso filósofo espanhol, Rafael Gambra (Editorial Prensa Española, Madrid, 1968. Prólogo de Gustave Thibon), elaborada por José Pedro Galvão de Sousa.



Deixemos falar o próprio autor. Numa entrevista dada a propósito deste livro e publicada na revista Roca Viva, assim justifica Rafael Gambra o título do mesmo: "O título desse meu último livro faz referência ao silêncio que Cristo manteve diante de seus acusadores e diante dos que em sua vida humana lhe falaram para tentá-lo. Alude também ao silêncio com que Deus responde aos mais duros transes da vida espiritual humana, e a como o homem deve saber escutar e interpretar esse silêncio na profundidade da fé. Refere-se, enfim, à duríssima prova que para a sobrevivência da fé e da Cristandade está supondo isso que se chame hoje ‘experiência pós-conciliar’', à angústia daqueles que creem hoje perder a fé ou a esperança, enquanto Deus, uma vez mais, responde com o silêncio da sua dor''.
Mostra-nos o livro como nascem as civilizações históricas, mediante uma re-ligação transcendente, isto é, sobre bases sacralizadas, e como perecem por uma dissolução interior, decorrente de lenta erosão provocada pelo racionalismo, negador daquelas bases. Neste sentido, toma como ponto de partida o duplo conceito de engagement e apprivoisement, de Saint-Exupéry, para fazer o processo, à luz dessas noções, da civilização moderna tecnocratizada e paulatinamente desumanizada. Desligado de suas bases transcendentes, o homem acaba por se tornar também desligado dos "compromissos'' que o fazem participar da vida social no seu sentido mais profundo - o comunitário - e deixa de "domesticar'' os seres dos reinos inferiores que o cercam, tornando-se um estrangeiro no seu próprio mundo. Daí o fenômeno da massificação e as concepções mecanicistas do Estado de direito do liberalismo e do totalitarismo nivelador.
Na visão realista de Aristóteles, indivíduo e sociedade são "aspectos de um só ser: o homem concreto, que é ao mesmo tempo individual e social (natureza individual com radical tendência à sociabilidade), como demonstra o fato de que nunca se conheceram homens sem viver em sociedade, nem sociedade alguma que absorva a individualidade como nos grupos de animais gregários (formigueiros, enxames)''. O abstracionismo racionalista gerou primeiro a idéia do homem fora da sociedade, de Rousseau, inspirando o constitucionalismo liberal, e depois a concepção da sociedade absorvendo os homens, característica do Estado totalitário. Tanto para o liberalismo quanto para o socialismo, a sociedade passa a ser algo de extrínseco para o homem, sendo que no caso do socialismo o Estado a constrói como "um habitáculo técnico forjado mediante a organização e a adaptação dirigidas". A organização do Estado liberal cifra-se a uma técnica de convivência das liberdades, e a do Estado totalitário consiste no planejamento dos serviços e dos seguros abrangendo toda a via humana.
"Em face de tais concepções de fundo racionalista" - escreve Gambra - "a autêntica reivindicação humana se expressaria num impulso que, segundo seus diversos aspectos, poderíamos chamar corporativismo, institucionalismo ou comunitarismo histórico. A ordem social não se cifraria assim em criar ou manter um poder racional e neutro que vele só pela liberdade dos indivíduos ou que os proveja de meios e seguros. Mas, pelo contrário, consistiria em recuperar mediante o compromisso e a domesticação o universo existencial de grupos e de instituições capazes de conferir sentido histórico, cordial, à vida coletiva dos homens, e ao mesmo tempo defendê-la das supercriações do Estado racionalista planificador”. Assim, pôde escrever Camus num de seus últimos livros: "A verdadeira libertação do homem se apoiou sempre nas realidades mais concretas: a família, a profissão, o município, que fazem transparecer em seus limites o ser, o coração vivo das coisas e dos homens". Tal, enfim, a idéia de Saint-Exupéry, que concebe a cidade como o navio ou a mansão dos homens, "comunidade de laços, de recordações, de esperanças, onde cada passo e cada tempo tem sentido".

"Compromisso, domesticação (apprivoisement) e corporativismo histórico vêm a ser assim os correlatos dialéticos do que no século racional foram o individualismo, a atitude estética e o liberalismo".

São sempre estas as idéias que dirigem o fio das reflexões contida no presente volume: "Na entrega (compromisso) e no amor, o homem cria sua própria personalidade e seu mundo próprio. Na sua sêde ou seu fervor, e na domesticação de um mundo valioso e sagrado para êle, está o verdadeiro homem e o sentido de seus dias".
Belas páginas sobre a "aceleração da história" - tão bem estudada por Daniel Halévy e por Marcel de Corte - e um capítulo impressionante sobre "a jogralizaçao da fé", comentado estas palavras de João XXIII: "Não é culpado somente quem de modo deliberado desfigura a verdade, mas igualmente quem, para estar "em dia", a atraiçoa com uma atitude ambígua".
Em seu prólogo, Gustave Thibon assim se expressa: "Num século em que reina o conformismo do absurdo e da desordem, em que o ídolo da revolução permanente se converteu em centro de atração para os rebanhos de escravos teledirigidos, nada há de mais novo e mais insólito do que pregar o retorno às fontes e defender a natureza e a tradição".
Essa pregação tem sido uma constante na vida de Rafael Gambra. Em El silencio de Dios ele a retoma, em meio à amargura da hora presente, procurando sobrepor-se ao derrotismo e "esperar contra toda a esperança", segundo o conselho do Apóstolo, dando um brado veemente entre os "arautos e forjadores de uma futura reconciliação do homem com a Cidade; uma Cidade renovada cujos fundamentos re-ligados sejam aceitos na humildade, no amor, e nunca mais no orgulho racionalista dos "desmitificadores" da fé".
Clama, ne cesses... Este livro - diz ainda Thibon - é "um grito de alarma profético". A nós que não queremos fugir aos "compromissos" e ao apprivoisement, que queremos preservar a natureza e salvar os valores da tradição, cumpre-nos gritar até que a nossa voz se imponha e faça calar o linguajar bárbaro dos slogans condicionadores do pensamento teleguiado.
E um dia Deus romperá o seu silêncio.

José Pedro Galvão de Sousa.


Revista "Hora Presente" - Ano I - Janeiro/Fevereiro 1969 - Número 3

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