"Um só Tristão para uma só Isolda". Todo
o amante julga única a sua bem-amada. É falso e é verdadeiro. O amor, como os
contos de fadas, é uma mentira e uma realidade. Mentira, quando pretende
aplicar-se às aparências terrestres, e realidade, como símbolo da vida espiritual
e divina. Tem três graus: o sonho, que é uma aparência de aparência, depois
esta aparência um pouco mais sólida do que nós chamamos o real, e enfim a
verdadeira realidade, pressentida através do sonho e experimentada pela
realidade imperfeita da vida quotidiana, a qual fecha o ciclo e nos põe em
contacto com o eterno.
Todos os amorosos julgam possuir um ser eleito
entre todos e encontrado por milagre. É estúpido, porque, não dispondo de uma
escolha infinita, e impelidos por esta força essencialmente cega e anônima que
é a sensualidade, são obrigados a contentar-se com o que encontram. O melhor
amor, no princípio, não passa da combinação de uma necessidade e de um acaso. E
o que nós amamos na bem-amada, é mais a posse do que o objecto, a consolação do
que a consoladora. A própria fidelidade nada prova. Há homens de hábitos que se
prendem a uma mulher, como certos amadores de vinho que só querem beber
carrascão ou certos automobilistas que ficam sempre fiéis ao mesmo tipo de
carro...
O amor verdadeiro começa quando a gente reconhece
que o amor das criaturas não existe e que o ser "eleito" não passa de
um alimento oferecido à nossa fome pelo acaso dos encontros ou de um equívoco e
uma ilusão do nosso caminhar às cegas para o absoluto. Qualquer outro teria
fàcilmente ocupado o mesmo lugar, porque não há pão duro para quem tem fome e
toda a madeira é boa para fazer ídolos. A revelação é dura, mas deste banho de
verdade, vasto e amargo como um oceano, vê-se surgir, como uma aparição que
dissipa as aparências, um novo amor da criatura que nada mais deve à
necessidade, ao acaso, e a mentira; este amor é puro, porque reconheceu e se
despojou de todas as medidas, invulnerável, porque atravessou a morte, único,
porque encontra no ser amado a imagem virgem do Deus criador. Mas antes de
ressuscitar faz morrer, e é por detrás da lia do nada que se saboreia o ser.
Assim, nós não amamos um ser porque ele é único,
pelo contrário, porque nós o amamos é que ele se torna único. É o amor que nos
eleva à existência imutável e imortal; ele é "forte como a morte",
porque, como ela, nos arranca ao tempo e às aparências. Antes de amarmos e
sermos amados, não temos verdadeira existência; não passamos de uma nebulosa de
possibilidades confusas e quase anônimas. O amor liberta-nos da massa informe e
comum, do vão turbilhão dos átomos inseparáveis; de duas solidões faz uma.
Assim, todos os blocos de mármore do mundo se assemelham mais ou menos; mas
quando Miguel Ângelo escolheu um deles, ou fosse por acaso ou para esculpir o
seu sonho, todos os acasos são imediatamente ultrapassados, e a forma da
estátua corresponde a uma ideia única de um Deus eterno. E a matéria e a forma
da obra tornam-se inseparáveis para sempre.
É precisamente o milagre do amor transformar os
encontros do acaso em dons da Providência, e revelar-nos, através das provas
que matam em nós tudo o que é mortal, a frágil e divina centelha de um amor
irredutível a todos os denominadores comuns da matéria e do tempo. Como, sem
passar pela morte, saberíamos nós que temos algo de imortal?
___ Gustave THIBON. O olhar que se esquiva à luz, Porto: Livraria Figueirinhas, 1957.
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