E na casa se vive,
sob as monarquias do pai e da mãe, as aristocracias dos maiores ou mais
capazes, as repúblicas dos iguais, e, como não, também suas perversões, as
tiranias de monarcas mal entendidos e egoístas, as plutocracias que decorrem
desse egoísmo e as democracias que ocultam afãs anárquicos através de outras
perversões. Aprende-se então que a coisa mais excelente pode ser pervertida e
originar muitos males, como o berço que foi empregado para esmagar a cabeça de
uma criança. Aprende-se então que as estruturas nem são boas nem são más em si
mesmas, mas que podem ser prejudiciais ou benéficas segundo o uso que delas se
faça. Aprende-se, pois, a saber que a sociedade é segundo sejam seus
componentes, e, normalmente, nem totalmente má nem totalmente boa. Aprende-se
assim o realismo.
Por outro lado,
aprende-se que cada homem e cada coisa tem simultaneamente uma qualificação -
ou zona - publica e outra privada; que há uma intimidade inviolável de cada
pessoa, mas ao mesmo tempo que nela há algo que é de todos, e este fato se
repete em cada grupo social. A criança aprende que dispensa e os móveis da casa
são públicos para os membros família e para os que com ela habitam, mas são
privados em relação aos que não são da casa; do mesmo modo logo encontrará em
uma cooperativa, em um clube, em um município etc, o mesmo fenômeno de ser
público para uns, privado para outros, segundo a lei natural das comunidades. E
a ideia das comunidades nasce assim como a de círculos dentro dos quais existe
o público que é privado para o exterior.
Mas, ao mesmo
tempo, o camponês sabe que pertence a diversos grupos simultaneamente, como
filho de uma casa, como vizinho de um povo, por ofício, por afeições que o
impelirão a fazer parte de um coro ou de um grupo teatral, mediante o qual cada
pessoa manifesta e solidifica socialmente as diversas facetas que formam a
personalidade individual dentro de personalidades coletivas diversas.
Ao mesmo tempo, no
campo, as casas estão relacionadas entre si por laços de sangue, amizade,
negócio, vizinhança, e sobretudo pelos membros comuns entre duas comunidades.
Assim os povos são verdadeiras famílias de famílias nas quais sobretudo o
sangue e a amizade travam entre si as unidades sociais das casas. Não são
simples amontoados de areia, ou quantidades de água que adotam a forma da
vasilha, não são gomos de bola desligados entre si e que só o envoltório do
couro mantém reunidas; são elementos fortemente trabalhados dentro de cada casa
e que formam elementos de distintas ordens, sempre ligados intimamente ao modo
em que os órgãos do corpo estão intimamente reunidos entre si.
Não são membros
postiços que mudam ao nosso capricho, são o que são porque assim são. E a
sociedade não é uma organização racionalmente constituída a priori pelo
governo, mas um grande corpo de múltiplos órgãos que desenvolveram-se a partir
de um embrião, naturalmente, com a colaboração da razão prática dos membros que
a integram; e, por isso, a sociedade não é massa, nem é ortopédica, mas
fundamental e naturalmente orgânica, coisas que no campo esta à flor da pele.
E do mesmo modo que
aprende-se com um animal não pode ser selado nem ser levado a lavrar enquanto não
tenha crescido e logo aprendido a fazê-lo, também a criança camponesa conhece
que as limitações vão sendo suprimidas à medida que ele adquire fortaleza e
capacidade para exercer o que lhe era proibido: manejo de ferramentas,
decisões, responsabilidades que lhe vão sendo confiadas à medida que suas
capacidades se desenvolvam. As liberdades não são uma ideia abstrata; se fazem
muito concretas no social, e cada nova liberdade adquirida dilata os limites da
liberdade, mas nunca os suprime, de modo que, ainda quando adulto, o camponês
reconhece naturalmente a necessidade de submeter-se a certos limites sociais da
liberdade. A liberdade selvagem, ilimitada, na tem aqui sentido algum, pois
todas as liberdades muito bem conhecidas são concretas e, por si mesmo, o
concreto é limitado, ao mesmo tempo que ordenado.
Outro aspecto da
liberdade lhe vem de longe com as vagas lembranças de antigas servidões hoje
aparentemente extintas. É o aspecto politico no qual liberdade é capacidade de
pactuais ou contratar. O servo não tinha esta liberdade e nisso estava sua
servidão; sem embargo, um homem livre podia servir a outro sem perder sua
liberdade enquanto ele tivesse a capacidade de pactuar seu serviço. Os antigos
senhores foram substituídos modernamente por um único, mas total senhor, que se
materializa na Administração do Estado, contra o qual não cabe recurso nem
pacto. Isto só foi totalmente realizado nos países em que o Estado de Hegel é
uma realidade total, mas ainda em todos os demais, inclusive na Espanha, a
tentação de ampliar o poder que tem, leva a administração a implantar este
caráter indiscutível de mando, sem possibilidade de pacto em muitos pontos de
sua atuação. Este conceito de liberdade politica como capacidade de pactuar é
de origem tipicamente rural, desde a Idade Média, já que na Catalunha feudo
significou verdadeiramente pacto (foedus, foederis).
E, acima destas
liberdades, no terreno interno e pessoal que é inviolável, o camponês sabe que
tem uma liberdade interior fortemente relacionada com sua capacidade de amar e
de odiar. Nela, cada homem pode optar pelo bem e pelo mal, pode orar ou
blasfemar como – segundo bem disse Martín Descalzo – um lavrador só blasfema por
estar tão perto da ação do Criador na natureza.
Nestes conceitos,
poucas vezes formulados, mas que todos dão por solidificados, os direitos são
sempre também deveres. Direito de regar é dever de regar, e sem o segundo o
primeiro carece de sentido. Igualmente os direitos do herdeiro catalão era uma
coleção de deveres. Direito-dever são a mesma coisa e que tem relação com os
conceitos anteriores de liberdade, de modo que, na vida normal, os camponeses
falam pouco deles, mas usam de regras muito rígidas em relação a eles. Isso não
quer dizer que a influencia da televisão e do cinema não lhes façam também
falar de liberdade e escravidão, em formas parecidas com que dizem os homens da
cidade...
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José Maria GIL MORENO DE MORA
(1926-1979). Salvar el campo, salvar la patria. Verbo, n. 178, pp. 929-930.
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