“Nos damos o direito de
descrever o pensamento utopista como a crença em um início imaculado e em uma
perfeição alcançável. Quando se analisa a mentalidade utopista deve-se destacar
que todos os avanços que ela efetua partindo desde o hipotético, ou postulado
estado de perfeição primitiva até o de perfeição restaurada, encontram-se
sempre acompanhados de doses exageradas de pessimismo e de otimismo que se
apresentam mescladas em proporções que nos parecem chocantes. É muito comum que
uma concepção tão pessimista do universo como a que se apresenta no
materialismo radical, e segundo o qual todas as coisas foram criadas ao acaso e
de tal modo que o próprio ser humano não é mais que uma agregação fortuita de
átomos, leva a um otimismo irracional sobre a possibilidade de estabelecer uma
comunidade feliz. Na realidade, nesse caso o pessimismo e o otimismo não se
contradizem mutuamente já que cada um possui seu rol delimitado: o utopista
pode muito bem permanecer sendo pessimista sobre a natureza humana individual
enquanto conserva seu otimismo sobre a natureza social do homem, tal como se
apresenta incorporada na comunidade, e de seu poder para vencer a contumácia do
indivíduo. É certo que vencer a resistência individual implica o emprego da
força, mas o utopista assegura que isto se justifica quando as metas são a
bondade e a perfeição. Ademais, até é admissível estabelecer um governo
especial daqueles que foram eleitos como depositários da doutrina da sociedade
perfeita; tais eleitos têm o direito supremo de obrigar a cada indivíduo a
abandonar seu egoísmo e a adornar-se com a roupagem de candidato à perfeição.
Esta condição de
candidatura pode durar indefinidamente. A noção mesmo de governo dos eleitos,
quer dizer, de teocracia, implica uma ameaça perene por parte das potencias do
mal não corrigido ou, no melhor dos casos, pelos vestígios persistentes
daquele. Por isso a teocracia não ceder nunca, pois enquanto exista o perigo –
e a simples ausência de entusiasmo pelas leis teocráticas se interpreta como
sinal de perigo – as forças repressivas não devem afrouxar sua tensão. Aos que
manipulam tais forças há que mostrar-lhes que seus sujeitos, os candidatos à
perfeição, vivem em estado de entusiasmo permanente.
Naturalmente, dado que
sempre se apresentarão coisas que façam perigar essa teocracia, os designados
para administrar insistirão em demonstrações regulares e entusiastas de adesão.
Por exemplo, sob os regimes comunistas não é permitido ao indivíduo permanecer
simplesmente em silêncio: deve falar, escrever, aprovar e proclamar, tudo isto
com um entusiasmo mais sonoro que o de seu vizinho.
Pessimismo em relação ao
indivíduo, otimismo em relação à coletividade e entusiasmo exaltado.
(...)
Se afirmou que tais
construções utopistas configuram um jogo realizado com elementos tirados da
realidade, mas ordenados de maneira diferente.
Sem embargo, e como fez notar Raymond Ruyer em L’Utopie et les Utopies, o elemento que mais salta à vista na
literatura utopista é a crítica social e política, o desgosto ante a comunidade
atual, com seus regimes políticos e seus obstáculos à felicidade. Ademais, como
já afirmado, estes utopistas não mostram nenhum desejo de efetuar simples
reformas, pois sua crítica vai muito além de uma mera proposta de simples
mudanças: com efeito, são os fundamentos mesmos do estado da humanidade o que
esses pensadores quiseram demolir para em seu lugar colocar outros novos. Nesse
sentido, ditos estudiosos merecem o qualificativo de ‘radicais’, já que sua
reconstrução da sociedade e do homem exige uma renovação total das elucubrações
acerca de Deus e da Criação.
Como pensador, o utopista
é simultaneamente irracional e lógico. Uma vez edificada sua república
imaginária (e algumas vezes se trata inclusive de um mundo fantástico com suas
próprias leis físicas distintas das do nosso), uma vez realizado esse grande
salto para dentro de um sistema distinto de ideias, procede com uma lógica
estrita, sem deixar nada abandonado à própria sorte. Suas criaturas humanas se
comportam ou se as faz comportar como autômatos, e a organização de suas vidas,
no curso das quais executam com precisão cronométrica as tarefas assinaladas
por uma autoridade central, não muda jamais. Precisamente em razão de que o
pensador estabeleceu seu sistema próprio fundamental de ideias, o povo
estruturado pela mente do utopista já não se encontra mais na dependência de
sua natureza humana e de toda a rica gama de variações que ela pode brindar: o
utopista se permitiu manejar seus dramatis personae com muito maior
liberalidade que o corrente em um novelista ou em um dramaturgo. Suas
criaturas, cortado o cordão umbilical que as ligava à mãe terra e à Humanidade
ordinária, se convertem então em marionetes, semelhantes a esses homens sem alma
que em alguns contos fantásticos se denomina como zombies, carentes de toda dimensão histórica, despojados de toda
liberdade e de toda possibilidade de escolher”.
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Thomas MOLNAR. El utopismo: la herejía perene. Buenos
Aires: EUDEBA, 1970, PP. 16-17.