“A garantia do direito à vida reclama o concurso da
estatuição penal. Por imperativo abstrato da justiça. Por exigência concreta de
defesa dos homens e da sociedade. ‘Porque a vida, disse-o Rodriguez Devesa, não
é apenas o suporte biológico de uma existência individual, mas o suposto
primeiro de subsistência da espécie humana’”. Ricardo Henry MARQUES DIP[1]
“Quais são os critérios para julgar e avaliar a
‘dignidade’ e a ‘aceitabilidade’ de uma vida? A saúde? O bem-estar social ou
econômico? A aceitação pela própria família, pela sociedade ou pelo vivente
mesmo? Quem decidirá a avaliação e a aplicação desses critérios? Quem tem poder
para decidira vida ou a morte?”. María del Carmen Fernández de la CIGOÑA CANTERO[2]
I
“O mundo moderno é
prostibular porque tornou negociáveis certos valores que o mundo antigo e o
mundo cristão consideravam como não negociáveis”, disse certa feita Charles PÉGUY, célebre escritor e herói francês. Mais
recentemente, o Papa Bento XVI, recebendo parlamentares do Partido Popular Europeu,
ressaltou de forma inequívoca que a promoção da dignidade da pessoa humana,
nomeadamente a proteção da vida da estrutura natural da família, constitui “princípios
não negociáveis”, acrescentando que esses princípios fundamentais, requerem
um consenso geral: “- a proteção da vida em todas as suas fases, do primeiro
momento da concepção até o seu termo natural; - o reconhecimento e a proteção
da estrutura natural da família (união entre um homem e uma mulher, tendo como
base o matrimonio), defendendo-se das tentativas de tornar equivalentes formas
radicalmente diferentes de uniões que na pratica contribuem para desestabilizar
a família, obscurecendo a sua insubstituível função social; - a proteção do
direito dos pais a educar os filhos”.
II
Causa, portanto, apreensão, os maus presságios que decorrem do Projeto
de Lei de Código Penal (PLS – Projeto de Lei do Senado n. 236 de 2012), que
tramita atualmente no Senado. O malsinado PLS, entre outros desvarios que
fogem aos limites do presente texto, opera uma radical alteração da
natureza lesiva do crime de aborto, uma injustificável diminuição da proteção
da vida humana no crime de infanticídio e despenalização da prática homicida da
eutanásia.
No corpo de normas do supradito Projeto de Lei “o crime de
aborto está praticamente abolido, restando apenas a hipótese de não
consentimento da gestante, efetivamente passível de punição; o crime de
homicídio doloso através da eutanásia livrou-se da sanção penal sob a rubrica
antinômica da piedade e o de infanticídio perdeu sua importância e gravidade ao
ponto de se transformar em uma banalidade, como a simples suspensão do
processo”, como assinala o
eminente Procurador de Justiça do Estado de Santa Catarina, Gilberto CALLADO DE OLIVEIRA[3].
Como se denota da leitura do Projeto de Lei
referente às matérias acima descritas, os integrantes da Comissão responsável
por sua elaboração olvidaram que a vida humana é um valor da pessoa, um bem que
forma parte necessária de toda pessoa concreta junto a outros bens. É um valor
ou bem igual para toda pessoa, não instrumentalizável e fundamental.
Com efeito, conforme
faz notar Ramón MACIÁ MANSO, Catedrático de Filosofia do Direito da
Universidade de Oviedo, “a vida deve ser respeitada
e preservada porque é um bem necessário
sem o qual deixaria de ser pessoa. Os atos de respeito e de preservação da
vida humana não só são bons senão também
de necessária posição – ação – no uso racional da liberdade, por isso devem ser
realizados. Os atos de aniquilação e de destruição da vida humana, não só
são maus senão de necessária omissão, não
podem ser admitidos no uso racional da liberdade, por isso devem ser evitados.
Há atos objetivamente bons e que devem
realizar-se por sua especial bondade e
atos objetivamente maus, que devem ser evitados por sua especial maldade[4]”.
Daí
que “não existe nenhuma vontade
individual nem coletiva, nem tampouco poder humano algum capaz de fazer que o
ato de matar outra pessoa ou a si mesmo deixe de ser mal e não deva ser
evitado. Tampouco existe poder nem vontade humana alguma capaz de fazer, por
seu simples querer e decisão, que o ato de matar uma pessoa se transforme de
mal em bom e de proibido em preceituado ou simplesmente permitido. Nem a
decisão de uma pessoa nem o acordo de uma assembléia pode, pelos simples querer
individual ou coletivo, anular nem transformar a bondade ou maldade objetivas
dos atos nem, conseguintemente, tampouco, intervir nem modificar, de modo
algum, o sentido do preceito ou proibição”.
A norma moral impõem o
dever de respeitar e preservar a vida humana, toda vida humana sem exceções,
desde o seu início até o seu termo natural. O problema de saber qual o momento
exato em que a vida se inicia, e mais concretamente, saber se o concebido e não
nascido tem uma vida nova diferente da mãe e quando está começa, é um problema
que só a ciência corresponde resolver.
Destarte,
como acentua agudamente o jurista português Mário BIGOTTE CHORÃO “o saber científico atesta, segundo opinião
amplamente sufragada e muito autorizada, que, com a fusão dos gametas, se
inicia a vida de um novo organismo biológico, um indivíduo da espécie humana,
autônomo e com identidade genética própria. Essa conclusão não parece
prejudicada pela situação desse organismo na fase anterior à nidação
(designada, por vezes, ambiguamente, ‘pré-embrionária’), nem pela hipótese
gemelar monozigótica. Por sua vez, a reflexão apoiada na filosofia da natureza
e na metafísica permite considerar – conforme a melhor doutrina – que o ser
humano embrionário é uma pessoa, ou seja: ‘rationalis naturae individua
substantia’ (Boécio); ‘individuum
rationalis naturae’ ou ‘subsistens in
natura rationali vel intellectuali’
(Tomás de Aquino); uma unidade substancial corpóreo-espiritual. Em suma, no
momento auroral da fecundação, não é uma coisa, mas alguém – um ser pessoal –,
que surge na terra dos vivos[5]”.
III
O menoscabo dos membros da Comissão pela vida da pessoa
humana, considerada como um valor ou bem fundamental e que deve, portanto, se protegida
pela lei positiva, não decorre ao que nos parece, apenas do desconhecimento da
lei natural, senão, também, de um acentuado laicismo que visa o total rechaço
de Deus e de sua divina lei da coisa pública e, por conseguinte, do direito. “Das
leis, e de toda a vida oficial, toda inspiração e ideia religiosa é
sistematicamente banida, quando não diretamente
atacada”, advertiu com pesar Leão XIII, de venerável memória.
O escárnio para com o
sagrado fica evidente quando se observa na segunda parte do relatório final do
Anteprojeto, que trata dos modos da codificação, a seguinte citação inicial do
vetusto filósofo e jurista sergipano Tobias BARRETO sobre a origem do
direito: “O direito não é filho do céu. É um produto cultural e
histórico da evolução humana”.
Para confrontar o
pensamento do incrédulo jurista, que para nossa tristeza é o pensamento de
muitos juristas e políticos de nosso tempo, pensamento este que subjaz no bojo
do Projeto de Código Penal, calha trazer à colação por sua singular atualidade
as palavras do ilustre professor Frederick Daniel WILHELMSEN, catedrático de
Filosofia e Política da Universidade de Dallas: “Um direito que não é
estimulado e penetrado, ‘animado’ pelo direito natural, ou é ‘direito morto’ ou
é ‘lei bestial’. Este direito bestial se baseia em um humanismo segundo o qual
o homem não depende de Deus, senão da sociedade, sendo puramente membro de um
rebanho. Mas de um tal humanismo para o bestialismo é um passo[6]”.
IV
Recentemente, com
pesar foi noticiado que “o Conselho
Federal de Medina (CFM) decidiu romper o silêncio e defender a liberação do
aborto até a 12ª semana de gestação. O colegiado vai enviar à comissão do
Senado que cuida da reforma do Código Penal um documento sugerindo que a
interrupção da gravidez até o terceiro mês seja permitida, a exemplo do que já
ocorre nos casos de risco à saúde da gestante ou quando a gravidez é resultante
de estupro”. (Ligia Fromenti, “CFM vai apoiar o direito de a mulher abortar
até a 12ª semana de gestação”, O Estado de São Paulo, 21/03/2013).
O tema é atual: em
2007, uma sessão da Anistia Internacional
propôs para seu próximo congresso proclamar o aborto como direito humano da
mulher e também se propor a reformar o
juramente de Hipocrates, prestado durante séculos e séculos pelos médicos.
(Margherita De Bac,
“II Giuramento di Ippocrate? Vecchio, vieta
l’aborto”, Corriere della Será, Milano, 9/12/2007).
Em sua dissertação nas Primeiras
Jornadas de Deontologia, Direito e Medicina, patrocinado pelo Colégio
Oficial de Médicos de Madri, o veterano e infatigável lutador em prol do
direito à vida, Dr. Antonio de SOROA PÍNEDA, em sua conferência intitulada “Direito à vida na Espanha e países americanos”,
já no longínquo ano de 1976 vaticinava com notória lucidez: “Não estamos diante de um problema confessional, racial
ou médico, senão de um movimento de escala internacional que, baseado em um tão
refinado como miserável materialismo, alcançou autenticas dimensões de
‘massacre’, pretensamente justificados com a idéia de uma vida mais tranqüila
para os sobreviventes. Em tal corrente está se envolvendo a ciência médica,
cujo fim substancial é preservar as vidas humanas”.
Ao que acrescentava
em tom de denuncia: “na América,
poderosos lideres em negócios macabros, com o instrumento das subvenções,
fomentam desde o mais primário nível escolar a dissociação entre o prazer e a
fecundidade, por meio do contraceptivo, da esterilização, do aborto e até o
infanticídio, colaborando em alguns casos os serviços de Segurança Social e
altas organizações internacionais: a ONU e dependentes dela, como a UNICEF,
cujo fim seria, em tese, proteger a infância”.
Daí que, o catedrático de filosofia Rafael GAMBRA CIUDAD, no mesmo
evento, discorrendo sobre o tema “Ética e
metafísica”, com clareza meridiana fez ver que: “Somente sobre a base
de uma ética metafísica (e de uma lei natural) poderá sustentar-se uma deontologia e um código de honra profissionais,
por mais que para os não crentes no Fundamento Ultimo de tal Lei se transmita
legendária – e providencialmente – como o Juramento Hipocrático através de mais
de dois milênios de tradição cultural”.
V
É preciso incluir neste cenário de horrores o decreto 7037/2009 que aprovou o denominado PROGRAMA NACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS-3, assinado pelo então presidente Luiz Inácio LULA DA SILVA e
seus ministros, entre eles, Dilma ROUSSEFF, ao tempo, chefe da Casa Civil. Sua
leitura repulsiva, já que se encontram ali depravações e felonias de toda
espécie, a ponto tal que pode ser considerado como o máster plano da ofensiva contra a vida reta e sã. Em uma de suas ações
programáticas, revestidas do título de “direitos das mulheres para o
estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania”, o
PNDH-3 propõe “considerar o aborto tema de saúde pública, com a
garantia do acesso aos serviços de saúde”. Daí a ordem programática
aos legisladores brasileiros para a descriminalização do aborto: “Recomenda-se
ao Poder Legislativo a adequação do Código Penal para a descriminalização do
aborto” (Diretrizes 9 e 10).
Quando se começa a
viver como se Deus não existisse, as más ações, outrora reconhecidas como
pecaminosas – isto é, ofensivas à lei de Deus -, encontram quem as justifique,
numa subversão à ética tradicional e numa visão de mundo em que a atividade
humana, deixando de ser orientada para o divino e o eterno, dirige-se para os
bens temporais - o prazer, o dinheiro, o poder, a utilidade social – como se
fossem valores absolutos.
Nesse caso, conforme
acentua o preclaro e saudoso jurista José Pedro GALVÃO DE SOUSA, não há mais
obrigação moral, e a obrigação jurídica fica reduzida a uma imposição
do poder público. Bem o compreendeu o romancista russo Dostoievski (1821-1881),
ao dizer, em trecho famoso de sua obra “Os irmãos Karamazov”, que, se
Deus não existe, tudo é permitido.
Em suma, com a morte
de Deus, para usar a linguagem de hoje, tão cara à ideologia “comuno-ateísta”
preconizada e defendida, embora se diga o contrário, pelos subscritores do
PNDH-3 e os membros da Comissão responsável pela elaboração do Projeto de
Código Penal, todos os valores e todas as normas objetivas desaparecem. Ficamos
para além de todos os valores e de toda a norma objetiva. Os únicos valores e
normas possíveis nessa hipótese ateísta são os valores e normas puramente
subjetivos e consequentemente relativos.
VI
Nesse contexto,
assiste razão ao professor Francisco CANALS VIDAL, insigne filósofo e membro da
Pontifícia Academia de Santo Tomás de Aquino de Roma quando afirma que “nos
encontramos diante de ações políticas em luta contra a ideia de Deus e
trabalhando ativamente na ‘secularização’, no afastamento da vida humana de
toda orientação eterna e transcendente, na educação dos homens para a ‘morte de
Deus’ e autodeterminação de si mesmos[7]”.
Sem embargo, como diz o Professor Vladimiro
LAMSDORFF-GALAGANE, catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de
Granada, “a história no ensina
– mas nunca aprendemos suficientemente – que uma sociedade, para subsistir,
necessita de uma mínima moral social. Quiçá se viva mais comodamente sem ela,
mas se vive menos tempo, por isso, há que conservá-la[8]”. E descriminalizar o aborto nas
circunstancias descritas no Art. 28 do Projeto de Código Penal, eximir de pena a
prática homicida da eutanásia e diminuir a proteção da vida humana no crime de
infanticídio, implica descer abaixo do mínimo tolerável.
Por derradeiro, não
nos resta senão fazer eco ao chamado do ilustre procurador de justiça Gilberto
CALLADO DE OLIVEIRA: “é preciso, portanto, que os legisladores
brasileiros, que devem pronunciar-se sobre esse projeto de lei, tenham bem
presente que aprova-lo significará subverter não apenas os princípios cristãos,
mas a própria ordem vigente na natureza, expressa nos princípios da Lei natural9]”.
Toledo,
15 de abril de 2014.
Fernando
Rodrigues Batista
“Sem o
direito natural não há Estado de direito. Pois a submissão do Estado à ordem
jurídica, com a garantia dos direitos humanos, só é verdadeiramente eficaz
reconhecendo-se um critério objetivo de justiça, que transcende o direito
positivo do qual este depende. Ou a razão do direito e da justiça reside num
princípio superior à vontade do legislador e decorrente da própria natureza, ou
a ordem jurídica é simplesmente expressão da força social dominante”. José Pedro GALVÃO DE
SOUSA[10]
[1]
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo; Acadêmico de honra da Real
Academia de Jurisprudência e Legislação de Madri: “Uma questão biojurídica
atual: a autorização judicial de aborto eugenésico – alvará para matar”.
[2] CIGOÑA CANTERO. María del
Carmen Fernández de la. “Bioética y tenocracia”, Verbo, Madrid, ns. 315-316,
1993, p. 522
[3] OLIVEIRA, Gilberto
Callado. Projeto de Código Penal: “Código de morte” prestes a desabar sobre a
cabeça dos brasileiros, São Paulo: IPCO, 2013, p.11.
[4] MANSO, Ramón Maciá.
“Las degeneraciones del poder frente ao aborto”, Verbo, Madri, ns. 215-1216,
maio-junho de 1983, p. 524.
[5]
BIGOTTE CHORÃO, Mário Emílio Forte. “Bioética, pessoa e direito: para uma
recapitulação do estatuto do embrião humano”.
[6]
WILHELMSEN, Frederick
Daniel. “El Derecho Natural em el mundo anglo-sajón del siglo XX”, conferência
proferida nas “Primeiras Jornadas Hispânicas de Direito Natural” e inserida nas
Actas (El Derecho Natural hispánico, pp. 224-225).
[7] CANALS VIDAL.
Francisco. “El ateísmo como soporte ideológico de la democracia”, Verbo
(Madrid) ns. 217-218, julho-agosto-setembro de 1983, p. 900.
[8] LAMSDORFF-GALAGANE,
Vladimiro. “El aborto ante la filosofia tomista”. Verbo, Madri, ns.
131-132, janeiro-fevereiro de 1975, p. 72.
[9]
OLIVEIRA, Gilberto Callado. Projeto de Código Penal: “Código de morte” prestes
a desabar sobre a cabeça dos brasileiros, São Paulo: IPCO, 2013, p.123.
[10]
GALVÃO DE SOUSA, José Pedro. “Apresentação do temário”, in. Primeiras Jornadas
Brasileiras de Direito Natural: O Estado de Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 190, pp. 6-7.
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