quarta-feira, 13 de agosto de 2014

PODER CIVIL, LAICISMO E FIM ÚLTIMO DO HOMEM

 “Se ao poder civil corresponde ordenar a vida em comum para que esta seja possível, justa e virtuosa, à Igreja compete manter essa noção de virtude e o termo para o qual deve ordenar-se. Não pode a sociedade civil por si mesma (neutra ou “laicamente”) orientar os homens para a consecução da virtude sem a colaboração da Igreja que, mantendo o deposito da fé, poderá outorgar fundamento e sentido último às leis, fervor à comunidade e enlace ou orientação transcendente à ordem temporal. A independência dentro de seus limites do poder temporal e do espiritual exige uma simultânea complementação e harmonia dentro do que pode chamar-se sociedade global humana e ao sobrenatural. Daí que quando a Igreja abandona os postos retores e a representação que organicamente lhe corresponde em uma sociedade cristã a título de ‘renunciar a todo poder terreno’, ou quando deixa de defender a unidade religiosa de um país aonde esta existe e é reconhecida, não realiza um ato de generosa renuncia ao que é renunciável, nem outorga uma liberdade que está em suas mãos outorgar, mas realiza uma deserção daquilo que é o seu dever e que constitui uma parte fundamental de sua missão. Porque uma sociedade sem laços para com Deus, sem pontes com a Eternidade (labor do pontífice) , é, como o homem sem fé, uma Cidade sem esperança, regida pelas paixões desregradas, seja de poder, de conforto ou de igualdade; paixões insaciáveis em si mesmas, via que leva à indolência, à inconformidade ambiental, à violência e à corrupção. A partir da Revolução [francesa], e consonante com a básica antropologia racionalista, a ‘ortodoxia pública’ moderna estabelece que o fim único do homem – tanto individual como politicamente – é a sua própria realização ou desenvolvimento, sempre em luta contra toda forma de obstáculo, constrição, mitologia ou (em linguagem já atual) alienação. A Cidade humana, como a casa na definição de Le Corbusier, será uma mera ‘máquina para viver’. Já não significará palácio nem pátria, não terá rosto humano diferenciado e estável, nem rosto divino: não será séde da família nem da estirpe, nem pátria ou terra dos pais: apenas habitação planificada e administração tecnocrática. O conforto, a dinâmica social, o desenvolvimento e o ‘nível de vida’ se declaram únicos objetivos humanos em uma civilização que – em frase de Gustave Thibon – dotou o homem de todos meios de vida ao mesmo que lhe retirou as razões para viver. Hoje assistimos, como em um pesadelo alucinante, a incorporação – ao menos aparente – de importantes setores da Igreja Católica à esta mentalidade antireligiosa, tanto no plano da antropologia filosófica como no da laicização político-social. Desde as mais altas alocuções às mais modestas pregações dos ‘novos padres’ uma tênue e declinante tintura religiosa trata de mascarar uma nova pseudo-religião do Homem, do Desenvolvimento e da Paz. Em séculos anteriores surgiram no seio da Catolicidade germes desta mentalidade laicista e antropocêntrica.  O protestantismo, em nome da intimidade da fé, propôs desde logo uma desacralização, na apenas da ordem política, mas da própria Igreja; o modernismo, no século passado, e começo deste, sugeriu uma paulatina dissolução da Igreja na humanidade inteira – “povo de Deus” – e a interpretação das promessas evangélicas como o cumprimento do progresso cientifíco e social. Uma e outra tendência foram prontamente expelidas da ortodoxia católica.
À nossa época estava reservado um novo e generalizado germe de tais tendências até atingir a aparente supremacia no seio da própria Igreja. A concepção sustentada por Maritain da nova Cidade laica-cristã e as tendências da Democracia cristã que buscam a todo transe a harmonização entre o cristianismo e o Estado novo nascido da Revolução; o teilhardismo e o progressismo que pretendem uma identificação da fé cristã (previamente desmitificada) com as supostas conquistas da Ciência e técnica modernas e do evolucionismo, abrem caminho à uma absurda interpretação do Cristianismo como um ‘serviço à Humanidade’, ou como um auxiliar ‘espiritual’ da Democracia e do Socialismo universais. Não outro é o sentido de boa parte das palavras que as hierarquias muito autorizadas da Igreja Pós-conciliar nos fazem passar como ‘palavra de Deus’".


____  Rafael GAMBRA CIUDAD. Sociedad y religación: la Ciudad como habitáculo humano, Revista Verbo, Madri, ns. 91-92, janeiro-fevereiro de 1971, pp. 18-19.


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