“Se ao poder civil
corresponde ordenar a vida em comum para que esta seja possível, justa e virtuosa, à
Igreja compete manter essa noção de virtude e o termo para o qual deve ordenar-se. Não
pode a sociedade civil por si mesma (neutra ou “laicamente”) orientar os homens
para a consecução da virtude sem a colaboração da Igreja que, mantendo o
deposito da fé, poderá outorgar fundamento e sentido último às leis, fervor à
comunidade e enlace ou orientação transcendente à ordem temporal. A independência
dentro de seus limites do poder temporal e do espiritual exige uma simultânea complementação
e harmonia dentro do que pode chamar-se sociedade global humana e ao
sobrenatural. Daí que quando a Igreja abandona os postos retores e a representação
que organicamente lhe corresponde em uma sociedade cristã a título de ‘renunciar
a todo poder terreno’, ou quando deixa de defender a unidade religiosa de um
país aonde esta existe e é reconhecida, não realiza um ato de generosa renuncia
ao que é renunciável, nem outorga uma liberdade que está em suas mãos outorgar,
mas realiza uma deserção daquilo que é o seu dever e que constitui uma parte
fundamental de sua missão. Porque uma sociedade sem laços para com Deus, sem
pontes com a Eternidade (labor do pontífice) , é, como o homem sem fé, uma
Cidade sem esperança, regida pelas paixões desregradas, seja de poder, de
conforto ou de igualdade; paixões insaciáveis em si mesmas, via que leva à indolência,
à inconformidade ambiental, à violência e à corrupção. A partir da Revolução
[francesa], e consonante com a básica antropologia racionalista, a ‘ortodoxia
pública’ moderna estabelece que o fim único do homem – tanto individual como
politicamente – é a sua própria realização ou desenvolvimento, sempre em luta
contra toda forma de obstáculo, constrição, mitologia ou (em linguagem já
atual) alienação. A Cidade humana, como a casa na definição de Le Corbusier,
será uma mera ‘máquina para viver’. Já não significará palácio nem pátria, não
terá rosto humano diferenciado e estável, nem rosto divino: não será séde da
família nem da estirpe, nem pátria ou terra dos pais: apenas habitação
planificada e administração tecnocrática. O conforto, a dinâmica social, o
desenvolvimento e o ‘nível de vida’ se declaram únicos objetivos humanos em uma
civilização que – em frase de Gustave Thibon – dotou o homem de todos meios de
vida ao mesmo que lhe retirou as razões para viver. Hoje assistimos, como em um
pesadelo alucinante, a incorporação – ao menos aparente – de importantes
setores da Igreja Católica à esta mentalidade antireligiosa, tanto no plano da
antropologia filosófica como no da laicização político-social. Desde as mais
altas alocuções às mais modestas pregações dos ‘novos padres’ uma tênue e
declinante tintura religiosa trata de mascarar uma nova pseudo-religião do
Homem, do Desenvolvimento e da Paz. Em séculos anteriores surgiram no seio da
Catolicidade germes desta mentalidade laicista e antropocêntrica. O protestantismo, em nome da intimidade da fé,
propôs desde logo uma desacralização, na apenas da ordem política, mas da própria
Igreja; o modernismo, no século passado, e começo deste, sugeriu uma paulatina
dissolução da Igreja na humanidade inteira – “povo de Deus” – e a interpretação
das promessas evangélicas como o cumprimento do progresso cientifíco e social.
Uma e outra tendência foram prontamente expelidas da ortodoxia católica.
À nossa época estava
reservado um novo e generalizado germe de tais tendências até atingir a
aparente supremacia no seio da própria Igreja. A concepção sustentada por
Maritain da nova Cidade laica-cristã e as tendências da Democracia cristã que
buscam a todo transe a harmonização entre o cristianismo e o Estado novo
nascido da Revolução; o teilhardismo e o progressismo que pretendem uma
identificação da fé cristã (previamente desmitificada) com as supostas
conquistas da Ciência e técnica modernas e do evolucionismo, abrem caminho à
uma absurda interpretação do Cristianismo como um ‘serviço à Humanidade’, ou
como um auxiliar ‘espiritual’ da Democracia e do Socialismo universais. Não
outro é o sentido de boa parte das palavras que as hierarquias muito autorizadas
da Igreja Pós-conciliar nos fazem passar como ‘palavra de Deus’".
____ Rafael GAMBRA CIUDAD. Sociedad
y religación: la Ciudad como habitáculo humano, Revista Verbo, Madri, ns. 91-92,
janeiro-fevereiro de 1971, pp. 18-19.
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