O presente texto é um comentário feito pelo saudoso filósofo Heraldo BARBUY sobre a
magnífica obra de Marcel de La BIGNE DE VILLENEUVE, "Satan dans la
Cité", que não obstante ter sido escrita em 1951, as teses levantadas pelo
autor francês constitui perfeito prognostico da vida política hodierna.
As teses defendidas por Marcel de la BIGNE
VILLENEUVE em seu livro sobre a Estatologia e em seu Tratado Geral do Estado
são aqui retomadas sob um aspecto inteiramente novo, qual seja o das relações
entre a situação do mundo contemporâneo e o diabolismo político social. Livro
mais popular do que os anteriores do mesmo autor e onde sua filosofia política
vem exposta de maneira mais atraente sob forma de diálogo entre um teólogo e um
sociólogo. A obra destruidora de Satanás no mundo é o tema central do livro. E
Satanás não é uma alegoria, nem uma figura literária, mas um ser concreto cuja
atuação neste mundo, de que é o Príncipe, se evidência em todos os tempos sob a
forma da possessão, que se distingue rigorosamente da doença nervosa. A
rarefação dos casos de possessão, longe de indicar que o progresso das ciências
expulsou Satanás do mundo, mostra ao contrário um aperfeiçoamento dos métodos
satânicos: a inabitação física é cada vez menos útil ao inimigo do gênero
humano, que infecta antes as instituições políticas e governamentais, num
movimento simulado, mais irresistível, em que centenas de milhares e de milhões
são levados à perdição. Satanás utiliza para seus fins o gregarismo moderno
usando um método à altura do famoso progresso das ciências, pelo qual se
pretendia decretar a sua desaparição. O reino das massas é o reino de Satanás,
no que representa de miséria, de injustiça, de descrença, de fanatismo, de
guerra, de desordem. Satã, em hebreu SHATAN, que significa o adversário, o que
é contra, diabo, de d’aballô o que se põe de través, implantou no mundo, depois
da Revolução Francesa, que é obra sua, o signo da destruição e da morte, da
perdição e do erro. As tremendas maquinações atribuídas a misteriosas entidades
terrenas, devem ser referidas ao Príncipe das Trevas e aquelas entidades,
quando reais, são os seus instrumentos. A "Soberania do povo" no
estilo da Revolução Francesa em que o povo é governado, o povo governa, do povo
vem a autoridade, mas a autoridade recai sobre o povo; o reino do laicismo, a
contra-igreja, que expulsa do mundo Deus, cujas leis são postergadas em nome de
um direito formal, que é uma suma de mentiras e utopias, tal o reino de Satanás.
A negação do Pecado Original, pela revolução que iniciou a infecção da
sociedade moderna. A luta contra as instituições religiosas, a ditadura
satânica do número, o liberalismo, o aniquilamento de toda moral transcendente.
Tal o reino de Satanás; tal a sociedade atual. Satanás, o Príncipe da Mentira,
afeiçoou à sua semelhança um mundo feito só de mentira. Nada mais
impressionante do que a descrição do reino da mentira, feita pelo teólogo:
"A duplicidade é universal; ela nos cega, nos sufoca, nos desgarra, nos apodrece e dissolve todos os nossos pontos de apoio. Nossa época e nosso espírito, estão de tal modo gangrenados de mentira que contaminam até as instituições e os homens que desejariam ficar indenes e os leva a recorrer, na falta de coisa melhor, à mentira para lutar contra a mentira. Mentira na filosofia política que pretende sub-repticiamente substituir o espírito pela matéria, a qualidade pela quantidade, o Criador pela criatura, a razão por uma cega aritmética. Mentira da linguagem política e especialmente do calão parlamentar, tornado anfibológico e quase hermético e do qual nenhuma só palavra, notava Péguy, conservou sua significação natural. Mentira nas instituições políticas construídas en porte à faux sobre fundamentos instáveis e ruinosos. Mentira em particular na Soberania do Povo, que desfigura a autoridade, de que faz uma escrava e o comando de que faz um despojo. Mentira na justiça que se torna a serva dócil da iniquidade triunfante, sem se preocupar nem mesmo com a evidência, prostituindo-se aos poderosos do dia e pretendendo impassivelmente converter a culpabilidade em inocência, a inocência em culpabilidade. Mentira na polícia que perverte a moralidade pública, que tem a missão de defender. Mentira na repressão e na vingança que se escondem sob a máscara da legalidade e na sombra dos cárceres. Mentira na interpretação do Bem Comum e do Interesse Geral, que já não são invocados senão para servir interesses de partidos, ou que se reduz a uma concepção sórdida, baixamente utilitária, que se confunde voluntariamente com o bem estar, as comodidades materiais e as satisfações dadas aos instintos gozadores das multidões. Mentira da lei, que já não é a ordem racional, imposta pelo bem de todos, mas a simples expressão, disfarçada em direito formal, da vontade do mais forte e entregue assim a uma perpétua instabilidade, a uma permanente injustiça. Mentira na liberdade, onde já não se quer ver o que ela é, isto é, uma lenta e penosa conquista e a faculdade sublime de ser causa, mas um dom gratuito e congenital e que se transforma em tributária do mal, em dissolvente da autoridade, em negação da responsabilidade. Mentira na Igualdade, em nome da qual se tende estupidamente dar a todos os homens, direitos, estatutos e satisfações uniformes. Mentira na Fraternidade, que se orgulha de tornar inútil a Caridade e nada mais faz do que renovar incessantemente o drama de Caim e Abel. Mentira na Moral, privada de sua base e de seu fim e tornada puramente fictícia. Mentira no hino universal entoado à apoteose da Pessoa Humana, cuja dignidade nunca foi tão desconhecida. Mentira na educação, que não passa d’um entulho, sem nenhuma ação formadora e deixa portanto de merecer o nome que se lhe atribui. Mentira no crédito que o Estado confunde abertamente com a espoliação e o roubo. Mentira na moeda, cujo valor real está num desequilíbrio cada vez mais completo com o valor aparente e tende irresistivelmente para o zero. Mentira, direi eu, até nas orações que certos políticos, que se pretendem religiosos, dirigem publicamente aos Céus pela salvação de um Estado que é a negação e a violação dos direitos divinos, pois, segundo a grande palavra de Bossuet, Deus se ri das suplicas que se elevam até Ele para desviar as desgraças publicas, quando não nos opomos ao que se faz para atraí-las.
Mentira, para
coroar o todo, no comportamento dos melhores que julgam, sob o pretexto de
evitar um mal maior, dever pactuar com o falso, arvorar opiniões que não são as
suas e dizer-se o que não são. Mentira, sim! Até na verdade, à qual se
incorpora sistematicamente uma parte de erro, mentira no erro o qual se
incorpora sistematicamente um parte de verdade, alienando assim o espírito dos
homens, de tal modo que aos olhos de grande número elas se tornam praticamente
indiscerníveis, intercambiáveis. Perversão e confusão, tornadas tais que, mais
cínico do que Pôncio Pilatos, um parlamentar francês, sem suscitar reprovação
alguma, pode proclamar: ‘Mais vale unir-se ao erro do que dividir-se na
verdade’."
Tal reino satânico, onde o Príncipe do Mal substitui o dogma da Imaculada Conceição pelo mito da 'imaculada conceição' do homem, com o seu progresso indefinido, com a sua inocência original, com a sua soberania coletiva, com as instituições em suma da contra-Igreja. A contra-Igreja, tem também, com a Igreja, o seu Credo, mas um credo de mitos, de erros e de mentiras. A Igreja de Cristo abre o caminho do reino celeste; a contra-Igreja pretende abri-lo para um suposto paraíso terrestre. Como a Igreja de Cristo é a Igreja de Deus, a contra-Igreja é a Igreja do Diabo, que tem o seu grande fetiche nas abstrações do 'Povo' deificado, hipostasiado pelas teorias revolucionárias, convertido num ídolo, no objeto duma demolatria... O credo da contra-Igreja é a famosa declaração dos 'direitos', onde os direitos verdadeiros e vivos são eliminados, pelos utópicos e abstratos. A contra-Igreja tem também a sua teologia, com 'doutores' e 'pontífices', com seus 'missionários', com sua magia que pretende operar a 'transubstanciação das ignorâncias', numa 'vontade geral', 'reta, inalterável e pura'. A contra-Igreja tem até os seus sacristãos e seus bedéis, seus objetos sagrados, figurados pelas urnas eleitorais e pelo fetiche do 'grande número'. O grande número é o número da besta do Apocalypse, o número 666: segundo Alberto o Grande e o Venerável Beda este é número da criação puramente material, o número da quantidade pura. A ditadura da quantidade, com suas sete cabeças e seus dez cornos que trazem o nome da blasfêmia.
Satan dans la Cité constitui uma das mais terríveis
críticas endereçadas à sociedade contemporânea e em particular à francesa.
Fazendo constantes referências a obras demonológicas, tais como a de Simone WEIL
Connaissance surnturelle e o volume de Études carmélitaines sobre a ação
satânica; apoiando-se em Encíclicas e na sua habitual erudição, Marcel de la BIGNE
VILLENEUVE consegue demonstrar que existe uma inteligência diabólica, nas
maquinações, pacientemente urdidas, que têm conduzido o mundo ocidental à
descristianização, o erro, à fraude, à heresia e que podem conduzi-lo a morte.
As nações não são imortais como os indivíduos que podem purgar nesta ou na
outra vida seus erros e seus crimes. As nações resgatam neste mundo mesmo os
seus atentados; e a força do demônio sobre os homens e nações é tanto maior,
quanto maior é a extensão dos seus pecados. VILLENEUVE mostra a obra do mal
progredindo pela alão de dois tipos de filhos de Satanás: os "filhos
legítimos" de Satanás que reivindicam abertamente sua origem e adotam sem
reticências o programa da Contra Igreja. E os "filhos bastardos" de
Satanás que pretendendo permanecer no seio da Igreja procuram conciliar Deus e
o Diabo, a revolta e a Verdade e que parecem ficar na Igreja para melhor
facilitar a entrada de Satanás. Os filhos bastardos de Satanás são os católicos
transigentes, que desejariam unir os contrários, estabelecendo um sistema de
vergonhosas concessões, em que, cada uma das partes cedem um pouco, em
benefício duma suposta harmonia entre a virtude e o crime.
Uma observação importante poderia ser feita sobre
este livro: VILLENEUVE nos mostra aqui todo o satanismo da política liberal,
que erige em face da Igreja uma Contra-Igreja.
Mas o liberalismo político-econômico já não vigora
e sim a sua consequência direta, que uma invasão cada vez mais insuportável do
Estado em todas as esferas de atividade individual. O liberalismo, como obra de
Satanás foi simples meio para chegar a um fim bem mais infernal, que é a
centralização de todas as instituições, e de todos os poderes em Estado
hipertrofiados e finalmente num Super-Estado Internacional, cuja infectação por
Satã é a perdição de milhões de almas pela obra de um único poder maléfico. A
ignorância mais infernal da nossa época é a ignorância dos princípios do
direito natural e a sua substituição por esse direito positivo, em cujo corpo
de leis cada vez mais numerosas transgridem a ordem divina do mundo. Já não é
mais tempo de clamar contra a excessiva liberdade do indivíduo em face do
Estado. Agora é tempo de clamar contra a excessiva liberdade do Estado em face
do indivíduo; de tal sorte que a maior luta de nossa época é a luta pela
preservação dos direitos da pessoa humana. Mas este não é um reparo e sim uma
explicação feita à poderosa obra de Marcel de la BIGNE VILLENEUVE, cuja leitura
é extremamente recomendáveis a todos os políticos e com tanto mais razão a
todos os católicos. Todas as formas de socialismo são formas de satanismo. E a
doutrina da Igreja, tão bem defendida no Tratado Geral do Estado de VILLENEUVE,
não é um meio termo entre capitalismo e comunismo e suma uma doutrina própria,
original e autêntica, inteiramente distanciada do capitalismo e do comunismo.
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