Um povo, ou mesmo uma civilização, pode conhecer um
desenvolvimento tal das forças do mal que lhe adjudique uma especial
significação de perversidade... Tal é a condição do que se chama "mundo
moderno", "civilização moderna", "cultura moderna",
"filosofia moderna”, em que o "moderno" não encerra uma
conotação puramente cronológica, mas valorativa, e que se refere a um processo
determinado que tem lugar nessa civilização. A civilização que se desenvolve na
história hoje, e que começou a aproximadamente cinco séculos, não guarda uma
continuidade homogênea com a civilização anterior. Há sim uma continuidade
cronológica, mas não valorativa. A civilização anterior se propunha,
basicamente, à criação do homem cristão, é dizer, de um homem para o qual os
valores referentes à vida eterna, cujo depósito se encontra na Igreja, eram o
que importava. A civilização se ocupava dos bens terrestres do homem, mas de
forma tal que reconhecia publicamente a ordem de valores dos bens eternos, de
cujo cuidado direto se ocupava a Igreja. Mas ela, essa civilização, em sua
política, em sua economia, em sua filosofia, em sua cultura, em sua arte,
favorecia a criação de um homem "cristão". Era uma civilização
mundana - com toda ambiguidade que acarreta esse vocábulo, e ainda com a
pendente ao mal que ele caracteriza -, mas uma civilização mundana que
reconhecia publicamente outros valores transcendentes superiores, a cujo
serviço devia de alguma colocar-se. Uma civilização orientada para o divino e o
eterno do homem, donde, por conseguinte, a Igreja, cuja razão de ser é
precisamente este aspecto do homem, era reconhecida como valor supremo de todos
os valores. Nos alvores do mundo moderno, a civilização deixar de mirar para o
eterno, o divino, o sobrenatural, do homem, para concentrar-se no puramente
humano. Já não põe o acento no "sobrenatural", mas no
"natural", no "humano". E toda a vida, na filosofia, nas artes,
na política, na economia, rebaixa de uma escola de valores que se orientava
para o sobrenatural, a uma escala de valores orientada ao puramente natural.
Aparece o Humanismo; desponta o laicismo da política e da vida; se rompe na
vida pública das nações o reconhecimento da Igreja como sociedade publica
sobrenatural. E esta ruptura da ordem pública que deixa de render à Igreja a
homenagem que lhe corresponde como Sacramento de Saúde do homem há de
significar ao mesmo tempo a ereção de outra civilização orientada para o humanismo,
racionalismo, naturalismo, em que só se tenham em conta os valores naturais do
homem. A civilização moderna deve ser entendida como uma tomada de posição
história frente à civilização cristã, a que tenta suplantar. Representa outra
concepção do homem, com outra escala de valores. Mas esta escala de valores
significa, por sua vez, um valor mais baixo que aquele que é substituído. O
divino é substituído pelo humano. Há, pois, uma degradação. Mas uma degradação
sumamente perigosa. Porque precisamente a teologia da graça ensina que o homem
não pode guardar a lei moral natural em sua integridade e de maneira
conveniente, senão com o auxílio do sobrenatural. Uma civilização que nega ou
simplesmente ignora a graça, não pode manter-se por muito tempo no plano humano,
e há de ir rebaixando para condições infra-humanas. É o caso da civilização
moderna, que do naturalismo, do racionalismo, do humanismo em que se desenvolve
durante os séculos XVI, XVII e XVIII, vai baixando à um economismo, ou
animalismo, próprio do século XIX. O homem já não busca a dignidade humana que
procuram a política, a filosofia ou a cultura das letras, mas a abundancia das
riquezas. A preocupação "econômica" vem a orientar a vida do homem
como se este fosse só um animal confortável. E o ideal humano já não é, não digamos
o santo, mas nem sequer o herói; agora o é o burguês. O capitalismo rege a vida
das nações. Mas aqui tampouco pode o homem manter-se. A degradação há de
continuar. O burguês buscava a riqueza, o bem-estar puramente material, o
econômico. Ao proletário lhe dá sentido não o bem-estar, mas "o
trabalho". O comunismo centra toda a civilização em torno do trabalho. O
homem foi feito para trabalhar. É um instrumento produtivo. Não já um animal,
no que pretendia converter-lhe o capitalismo, mas algo mais baixo, um puro
instrumento de produção. O homem hoje, depois de um processo de degradação que
leva cinco séculos, encontra-se em estado de impotência frente à "vida
pública" que lhe pressiona por todas as partes e lhe empurra para situações
cada vez mais degradantes. Falamos do empurre da "vida pública” sobre o
homem individual.
A "vida pública", com seu "ideário
religioso", com sua "filosofia da contradição", com sua política
de mentiras, com sua economia agobiadora, com sua publicidade e reclame de
reflexos condicionados; uma "vida pública" que persegue com seu
poderoso aparato tecnocrático a cada indivíduo, que foi quebrado anteriormente
em suas estruturas morais e psíquicas. O mudo que opera sobre o homem, longe de
ser o mundo da criação, do pecado e da redenção, de que falávamos antes, é um
mundo-máquina que se apresenta ante o indivíduo como um poderoso aparato
triturador. O homem é presa de uma engrenagem que se apodera dele, o envolve em
suas malhas e o faz circular em suas bobinas. Depois da etapa de degradação que
se prolonga durante cinco séculos, se inicia, com este resíduo degradado que é
o homem moderno, outra etapa de domesticação tecnocrática, na que se visa usar
o homem para a construção de uma enorme e poderosa Babel. O homem, privado do
gozo de Deus, do gozo da reflexão humana, do gozo do prazer animal e convertido
em simples peça para a Construção de uma poderosa Babel.
Padre Julio
MEINVIELLE. La Iglesia y el
Mundo Moderno: el progresismo en Congar y otros teólogos recientes, Buenos
Aires: Ediciones Theoria, 1965, p. 79-82.
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