1. Encontramos na "Política" de
Aristóteles um princípio básico da estruturação das sociedades que poderíamos
enunciar assim: "As sociedades são o
que são suas famílias".
Em outras palavras, a organicidade de uma
cidade verdadeiramente humana, tem base na célula familiar, na constituição
sadia e estável da instituição familiar. Os erros estruturais que podem afligir
uma sociedade são dois: um da dissolução individualista (erro do liberalismo
burguês) outro da absorção dos direitos da família pelo Estado (erro do
totalitarismo).
A dureza cristalina da família, a nitidez
estável de seus contornos é condição essencial de uma sociedade verdadeiramente
humana. Daí nossa repulsa pelo divórcio, à luz da razão natural antes mesmo da
iluminação da fé. O divórcio é uma reivindicação individualista, anti-social, e
por conseguinte anti-humana. O divórcio, como reivindicação individualista, é
essencialmente um erro corolário do erro mais geral do liberalismo; mas é
também um erro utilizado pelo totalitarismo, apesar da aparente contradição,
porque o totalitarismo aparece (como a história o demonstrou) como uma
contraditória conseqüência do liberalismo. Em relação à família os dois erros
sociais se encontram com a mesma maléfica eficácia; ambos procuram destruir a
estabilidade familiar e a indissolubilidade do vínculo; ambos ferem a lei
natural do mesmo modo, embora por motivos e em perspectivas históricas
diferentes.
2. Um outro princípio, que tiramos de Santo
Agostinho na "Cidade de Deus", diz que uma cidade de homens só é
verdadeiramente humana quando respira justiça. Fora dessa condição nós teremos
um aglomerado de brutos e não uma cidade humana feita à semelhança de Deus. Do
mesmo Aristóteles e de Santo Tomás tiramos o conceito derivado de amizade
cívica (amicitia), virtude anexa da justiça, virtude essencial, oxigênio vital
para o clima de uma cidade verdadeiramente humana.
3. Ora, esses dois princípios são conexos,
porque a família, a casa da família é, ou deve ser, o lugar onde se exercita a
amizade cívica, o lugar onde se destila, o lugar adequado onde se prepara o
elemento essencial ao bom clima humano da cidade. Esse será o nosso terceiro
princípio: a família é o lugar adequado para a germinação da justiça; é a fonte
da amizade cívica.
4. Avancemos mais um passo. Na situação
concreta do mundo, isto é, no caso concreto de uma humanidade decaída e
redimida, o problema moral da cidade, mesmo considerado sob o ângulo temporal,
deve ser colocado em sub-alternação aos preceitos divinos revelados, ou como
diz Maritain, deve ser colocado em termos de uma moral "adequatement
prise".
Nessa nova perspectiva ganha singular realce o
papel que desempenham as famílias cristãs. Já não se trata somente de estrutura
a sociedade com células normais que resistam à lepra do liberalismo ou ao
câncer do totalitarismo; trata-se agora de uma regulação muito mais profunda,
de uma atuação mais intensa em que a qualidade domina a quantidade.
Eu diria agora, com mais esse dado concreto da verdadeira
condição humana, que uma sociedade humana será medida pelo grau de heroísmo de
suas famílias cristãs. E esse é o nosso quarto princípio, que apenas traduza,
aplicando-as ao problema da estrutura social, as palavras evangélicas tão
conhecidas e tão pouco seguidas: "Vós sois o sal da terra".
5. Dirigindo agora a nossa atenção para a
concretíssima conjuntura, isto é, pensando no mundo em que vivemos, no momento
histórico que atravessamos, eu estenderia aos outros grupos — associações,
escolas, sindicatos — o que disse até aqui da família. E aplicaria a esses
grupos, proporções guardadas, os mesmos princípios que acabamos de considerar.
E por conseguinte, aplicaria aos movimentos católicos — isto é, às associações
fundadas com especificação temporal, como por exemplo a C.F.C. [1] — as mesmas
conclusões. E diria assim: a sorte das sociedades depende do grau de heroísmo
(de autêntico heroísmo cristão) dos movimentos católicos.
Ainda mais, diria que esses movimentos, pelo
seu caráter excepcionalmente militante, devem levar ainda mais longe do que
qualquer outra instituição cristã o grau de heroísmo necessário à salvação do
mundo. Parodiando Winston Churchill, que traduziu a seu modo inglês as palavras
de Cristo, eu direi que nunca, na história do mundo, tantos dependeram tanto de
tão poucos. E é essa desproporção que nos deve dar a medida do que Deus espera
de nós.
6. O nosso sexto princípio tem nexo estreito
com o anterior. Se os movimentos católicos, para atuarem no mundo, precisam de
uma forte dose de heroísmo cristão, concluímos que devem ter uma base de
espiritualidade de onde lhes venha essa força de sobrenatural fecundidade para
estímulo e vitalização de suas tarefas de ordem temporal e profana.
Não se trata de trazer para a tarefa especificada
por objeto de ordem natural as virtudes infusas que têm por objeto a salvação e
a a vida eterna; mas de trazer para a atuação no mundo um grau de liberdade,
uma força de heroísmo que só o evangelho pode dar. Em outras palavras nós
diremos que só pode atuar no mundo quem puder afirmar praticamente,
efetivamente, a transcendência do homem sobre o mundo. Ou ainda: só pode haver
obra social, com interesse fervoroso, para quem tiver cursado a escola
evangélica do desapego. E esse é o nosso sexto princípio, de capital
importância para os movimentos católicos.
Gustavo CORÇÃO. in "A Espiritualidade dos Movimentos
Católicos", A Ordem, dezembro de 1951.
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