quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

AS BODAS DE CANÁ

Tasso da Silveira (1895-1968)

Não me sinto à altura para tentar em algumas linhas mostrar quem foi e o que representou e ainda representa a figura emblemática de Tasso da SILVEIRA na cultura brasileira. Como era de se esperar, um longo eclipse paira sobre a imagem, sobre a obra e ideal do autor de "Canto Absoluto", não obstante o esforço pujante deste destemido editor que é Gumercindo Rocha Dórea (que fora por longa data amigo de Tasso) que recentemente, em 2003, com a contribuição da Academia Brasileira de Letras na pessoa de seu então presidente Alberto da Costa e Silva, editou o livro "Tasso da Silveira – Poemas" com organização e seleção de Ildásio Tavares.
Em outra oportunidade, se assim Deus aprouver, abordarei com mais detalhes as diversas facetas do pensamento e do homem Tasso da Silveira que, Joaquim Ribeiro definiu como "Poeta de feições monásticas".
"...este artista representa um fantasma, quase insuportável, apavorando, castigando a maioria das nossas consciências individuais. (...) este artista apresenta a imagem quase brutal, em nosso meio, da coerência, da probidade silenciosa, do respeito para com seus ideais". (Mario de Andrade)
"Todos os seus poemas, toda essa poesia escrita sem solenidade, encontra aqui sua única razão de ser. Tentar remissão para a humanidade, e, através da remissão conseguida, reintroduzir na terra a inocência perdida" (Adonias Filho).

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Dos passos evangélicos iluminados pela presença da Virgem, sem dúvida o da Anunciação e o do Calvário se revestem de mais transcendente e misterioso sentido; mas o de mais tranquilizante e jubilosa significação para a nossa fraqueza humana e para nossa necessidade de amparo é o das bodas de Caná.
Ainda em meio da festa nupcial, a Virgem repara que se esgotou a bebida capitosa que faz a alegria das festas. E num interesse comovente, puramente humano, que, por assim dizer, a Jesus não ocorreria, disse Ela ao divino Filho: "Eles não têm mais vinho".
Jesus entende a sugestão delicada. Mas é com severidade e se diria até com uma ponta de irritação que responde: "Mulher, que há entre mim e ti? Ainda não chegou a minha hora!..."
Que podemos compreender por estas expressões?
Que desde toda a eternidade estava marcado o momento preciso em que o Salvador deveria abertamente mostrar-se aos homens como Deus, operando milagres. E o momento marcado não era aquele das bodas. O pedido da Virgem era ordem de mãe e foi assim que Jesus o entendeu. Mas vinha, essa ordem, alterar toda a economia dos eternos desígnios.
Daí aquela severidade irritada.
Não obstante isso tudo, a Virgem não perdeu sua confiante serenidade, e sem retrucar ao Filho disse de manso aos servos: "Fazei tudo que ele vos disser".
Com que ouvidos de mistério teria ouvido Jesus estas palavras que significavam a ordem reiterada, apesar do que Ele havia dito, e com que olhos de mistério teria visto os servos obedecerem ao que mandara a Senhora! Seja como for, também não discutiu nem insistiu: transformou a água em vinho.
Neste passo, mais que em qualquer outro, é que podemos perceber o poder intercessório da Virgem. No fim de contas Ela alcançou, nesse momento, falando do fundo de sua humanidade humílima, mas também do alto de sua autoridade de mãe de Deus, modificar a vontade absoluta do próprio Deus. Não sei se nos livros sagrados há referência a outro qualquer acontecimento dessa ordem.
Nas bodas de Caná o fato se verifica irrecusavelmente.
Assim, que é a Virgem sagrada para nós?
Em primeiro lugar, a muito humana, a humaníssima, capaz de compreender nossa mais pobre queixa, nosso mais ingênuo pedido, uma vez que não envolva impureza e soberbia. Em segundo lugar, a que tudo pode junto do Filho eterno em favor nosso, a ponto de, se for preciso, quebrar, para atender-nos, o quadro das determinações absoluta da divindade.


Tasso DA SILVEIRA. in "Diálogo com as raízes – Jornal de fim de caminhada", fragmento datado de 28.4.1955.

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