Alfredo Lage
NADA É IMUTÁVEL; NADA É PERMANENTE
Mas que são os intelectuais de
esquerda? Os membros de uma nova clerezia, a clerezia da nova Igreja, ou
melhor, anti Igreja dos Iluminados (o clericalismo que suprime Deus mas
conserva o padre, como observa Jules Monnerot), em suma, os devotos do irreal,
os entusiastas do não-Ser. Ao contrário de Deus plenitude de ser para o fiel, o
Absoluto tal como o concebe o pensamento de esquerda, observa Molnar, "nunca está completo pois é imanente à
história que o engendra à medida que avança".
"A
plenitude é esperada a qualquer momento ou dentro de um bilhão de anos", de
qualquer sorte, o concreto é o inaceitável por definição. Toda materialidade é
sinônimo de imperfeição. O presente é que conduz ao Real através de sua própria
negação. No que existe aqui e agora, e em tudo que possui a concretude da
existência, temos a matéria sempre renovada da contestação.
A única atitude construtiva
consiste em recusá-lo em nome de um possível, objeto não de visão, mas de fé. "O espírito crítico da esquerda – a
falar propriamente – não é pois um espírito crítico, mas um espírito de negação
da realidade concreta" (La Gauche..., p.27). E o próprio Maritain
escreveu na Lettre sux l´Indépendance que "o
puro homem de esquerda detesta ser, preferindo sempre e por hipótese (...) ao
que é o que não é" (cit. no Paysan de la Garonne, p. 39). O que não é
– ou melhor; não é ainda – (vemos agora) é o Recomeço absoluto ou (como diz
Hegel) o Resultado da História de antemão conhecido, o qual consiste na
plenitude final por fusão no Todo.
Daqui para o horror do
permanente, do que, aqui e agora, dura ou perdura, sendo dotado de natureza,
que é o princípio de permanência; daqui – o repúdio das normas que são fixas
porque derivam dessa natureza. Para o homem de esquerda, as normas morais (como
o mesmo homem) são relativas ao tempo. A ética pertence ao domínio do
provisório (onde o Ser não é ainda e tudo está "em questão" e todas
as questões permanecem abertas). Tudo muda e a própria verdade deve resultar de
uma negação. Nesse diálogo universal, que é a evolução sujeita à dialética, ou
o processo mesmo da Humanidade divina, o atual está sempre sob acusação (pois
tudo o que pretende ser, neste baixo mundo, ou nesta etapa condenada da
História, é culpado de não querer durar). Na medida em que pretendem firmar-se
na existência, os termos presentes de qualquer situação social ou de qualquer
instituição, devem ser contestados. (O Conceito – como diz Fichte – transforma
a vida imediata num ser fixo e morto).
A Igreja com as suas
instituições e códigos, cúrias e dicastérios, seu corpo imutável de dogmas e seu sistema
disciplinar, a Igreja com organizações de base presas à terra (dioceses,
paróquias, lugares consagrados, o Vaticano e suas secretarias e representantes
no exterior, e tratados firmados com autoridades temporais etc). Essas mesmas
autoridades civis, o Estado, com seu sistema jurídico, sua ação estabilizadora
das relações civis e coordenadora dos vários grupos sociais (grupos de caráter
local, profissional, etc); o Estado – repito – com seus instrumentos de coação
e a precisa medida em que aspire à continuidade e pretenda ancorar-se aqui e
agora, criando raízes neste mundo do provisório, é mau. Mau é tudo o que
especifica, separa e diferencia, tudo o que, de modo constante, introduz
diversidades, categorias, ordens, divisões, qualificações, fronteiras (por
divisões, separações, oposições, multiplicidades são a marca do degrado ou
alienado que se opõe no Uno). A família, unidade básica da sociedade civil e
fator n° 1 de estabilidade social, a família, dotada de estrutura imutável e de
uma hierarquia fundada na natureza é especialmente má. Pretendendo o homem à
terra, merece tornar-se o alvo principal de todas as detestações. Não há
atitude mais "construtiva"
para a esquerda do que atacar, desmoralizar, enfraquecer e solapar por todos os
meios a família. "Familles, je vous
hais".
Alfredo LAGE. "As origens da contestação total", Revista Hora Presente, Ano III
– Agosto/1971, n° 10, p. 188/189.
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