Embora não seja característica do blog a publicação de textos longos, mas sim de citações curtas ou medianas, por sua beleza e profundidade oferecemos aos amigos
a primeira parte da tradução do obra livro do insigne novelista argentino Hugo
WAST(1883-1962), “Autobiografía
del hijito que no nasció” (Bs. As.: Theoria, 1961), que narra o
empolgante diálogo entre um pequenino ser no ventre materno e o seu Anjo
da guarda. Trata-se de um brado contra o horrendo crime do aborto, pecado
de malícia peculiar, como a sodomia, que clama aos céus por vingança.
I – O que meu Anjo
conta
Já faz alguns
instantes que sou um ser humano. Meu corpo ainda é tão pequeno que não pode ser
visto pelos olhos de ninguém, mas minha alma já é tão grande como sempre será.
Deus a criou para mim, no mesmo momento em que eu comecei a existir. Deus me
ama como se eu fosse uma pessoa perfeita. Deus segue criando inumeráveis almas
todos os dias, para todos os seres, filhos dos homens, que são chamados à vida.
Meu Anjo me disse que nascerão tantos seres quanto necessários para repovoar o
céu, despovoado em um terço de seus habitantes pelo Diabo.
Estas coisas
profundas para uma pessoa tão pequena como eu foram as primeiras que meu Anjo
da guarda ensinou. Devo explicar que tenho um Anjo da guarda escolhido entre os
inumeráveis Anjos que permaneceram fiéis ao serviço de Deus.
Melhor ainda! Meu
Anjo da guarda ensinou que Deus me ama desde toda a eternidade, como se não
houvesse existido outro ser senão eu. E que por mim realizou infinitas
maravilhas. E assim o fez para todos os seres humanos e seu Filho morreu por
cada um deles, como se fossem únicos no mundo, para salvá-los da guerra que o
Diabo faz aos homens.
Eu apenas entendo
tudo isso, mas ele sempre me repete e trato de reter tudo. Sem embargo,
confesso que fico cansado. Queria dormir.
Meu Anjo me fala sem
ruído e sem palavras. É como um fluído que me penetra. Compreendo
perfeitamente. Meus ouvidos, todavia não estão formados.
Ele me disse que eu
sou um menininho. Ou uma menininha. Ele não sabe ou não quer me dizer. Entendo
que ele sabe muitas coisas, mas que não convém me contar tudo. Ele guarda de
mim uma infinidade de segredos para quando eu for maior.
Disse que se me falar
demais, meu pequeno corpo vai se cansar. E é verdade, volto a sentir vontade de
dormir um pouco mais.
Será minha primeira
noite no seio de minha mamãe, que ainda ignora que eu existo.
Meu Anjo me disse que
é melhor que ela siga ignorando.
Por que não é bom que
uma mãe saiba que seu filhinho ou sua filhinha já existe?
Estou cansado. Será o
primeiro sono da minha vida no suave e tíbio seio de minha mamãe. Que
escuridão, meu Deus! É porque meus olhos ainda não se formaram?
II – Meu corpo vai
crescendo.
Meus ouvidos recolhem
alguns rumores de fora.
Quem é meu anjo? Como
se chama?
A cada novo dia, meu
Anjo me desperta com uma oração. Eu ainda não posso aprendê-la porque não tenho
memória. No entanto parece-me que meu corpo já não é tão pequeninho e que chego
a perceber alguns rumores que vem de muito longe.
Tudo o que está fora
deste rincãozinho tíbio e suave aonde vou me criando é longe para mim.
O Anjo disse que um
dia tudo isso me parecerá próximo e que então ele mesmo, que agora me cuida e
me ensina, terá que distanciar-se de mim.
Isto me encheu de
preocupações, o que significa que meu cérebro já começa a se formar.
Não me atrevo a
perguntar ao meu Anjo como ele poderá estar longe de mim algum dia, se Deus lhe
mandou ser sempre meu guardião companheiro, e como algum dia eu deixarei de
estar onde estou agora, porque haverei me desenvolvido completamente.
Não sei como
expressar estas coisas raras que me ocorrem e que fariam sorrir aos homens, se
pudessem escutá-las; mas nem eles, nem sequer meu Anjo, as escutam, como se
apenas eu mesmo me entendesse. A língua em que eu falo deve ser a língua dos
Anjos que se aprende em um momento. Falando, sinto que sou uma pessoa. Ou seja,
alguém que tem uma alma distinta das outras almas, uma alma que agora conversa
com o Anjo e que depois conversará com os homens, conversará com minha mamãe,
com meu papai e com meus irmãozinhos.
Meu Anjo me contou, e
isto me deixou muito feliz, que eu tenho dois irmãozinhos, que muito tempo
atrás viveram como eu, formando-se como eu estou me formando, de pouco a pouco,
e agora são duas preciosas criaturas: ele tem seis anos e ela cinco. Disse-me também
que eu poderia ter muito mais irmãozinhos, mas que todos morreram antes de
nascer. Meu Anjo disse que meu papai odeia seus filhinhos pequenos.
Não compreendi o que
isto significa, mas prestei atenção aos rumores de fora e percebi uma voz que
me parece ser de minha irmãzinha. É o mais maravilhoso que eu senti em minha
vida.
Contei isto ao meu
Anjo e ele me disse que devo ter sonhado, pois meus ouvidos ainda não são aptos
para escutar as coisas do mundo. Ouvira a ela, talvez, como posso ouvir aos
anjos?
Tive outro sonho e
não quis contar a ele, porque me parece que o ofenderia. É certo que eu não
saiba meu próprio nome porque não me chamarei de nome algum até que eu seja ou
um menininho ou uma menininha e me batizem, como ele me explicou. Mas o meu
Anjo seguramente tem um nome, distinto do dos outros anjos. Por que não me
contou? Eu apenas sei que o Anjo da guarda de minha mamãe chama-se Absalón, mas
seu próprio nome ele tem me ocultado. Me ensina muito!
Disse-me que ainda
que eu seja pequeníssimo e ele seja um Anjo poderosíssimo que todos os dias vê
a Deus e a Santíssima Virgem face a face, ele não pode penetrar minha alma,
aonde somente Deus penetra. Cada alma humana é como uma fortaleza fechada não
só aos Anjos, senão também para os demônios, que não podem entrar nela se o
dono dessa alma não lhe abre uma porta, ou uma janelinha, uma frestinha ao
menos, para poder começar a seduzi-la com maus pensamentos.
Coisas muito difíceis
de entender, mas que não esqueço quando meu Anjo me diz três vezes.
Mas por que digo meu
Anjo, se não conheço o seu nome e estou começando a pensar que este Anjo não é
o meu e que eu estou como que abandonado no mundo?
Estou morrendo de
sono e vou dormir sem cumprimentá-lo. Não acredito que me pertença. Devo
confiar meus segredos a quem possa contá-los a outra pessoa, ainda que essa
pessoa seja minha mãe?
III – Duvido que meu
Anjo seja meu.
Já posso me mover um
pouquinho.
Não esqueci nenhuma
das inumeráveis lições que vem me dando o meu Anjo, melhor dizendo, este anjo.
Ele afirma que sou muito inteligente, um pouquinho orgulhoso e reservado, pois
não lhe conto todas as coisas que penso.
É verdade. Como vou
contar que cada vez mais aumenta a minha suspeita de que ele não é meu
Anjo da guarda, mas sim um intruso, e que devo tomar muito cuidado ao me
comunicar com ele?
Escuto-o e aprendo. A
melhor lição que me deu é a de que Deus me ama desde antes que eu existisse com
um amor imenso e que a Santíssima Virgem é Mãe de Deus e também minha mãe,
outra mãe que me quer mais que a que agora me leva em seu seio.
E a pior lição, que
me fez estremecer de medo, é que meu papai odeia seus filhinhos não nascidos e
preferiria que morressem ou que não nascessem nunca.
– Então odeia a mim?
– Perguntei.
– Seu papai ignora
que você existe. És tão pequeninho ainda. Ai de ti se ele soubesse! –
Contestou-me o Anjo.
– E quando eu ficar
maior e ele souber que eu existo, me odiará?
– Não sei; nós anjos
não somos profetas. Muito temo que quando saiba que existes, ocorram coisas
tremendas.
– Meu papai também tem
Anjo da guarda?
– Sim, como todos os
seres humanos, como a Santíssima Virgem, que teve um grande Arcanjo.
– Como se chamava esse grande
Arcanjo?
– Gabriel, e foi ele
quem anunciou que ela seria a mamãe do Filho de Deus, que chamamos Jesus e que
é teu irmão e também irmão de todos os seres humanos que nasceram e que hão de
nascer, como você.
Ao saber que eu sou
nada menos que irmão de Jesus e que a Santíssima Virgem é também minha Mãe, me
sinto orgulhoso e me atrevo a interrogá-lo sobre aquilo que me desperta tanta
curiosidade:
– O Anjo de minha
outra mamãe, a mamãe da terra, se chama Absalón. E como se chama o meu Anjo?
Então ele me
responde:
– Não quero te dizer,
mas você se empenha em saber tudo. Eu sou Absalón, o Anjo da guarda de sua
mamãe.
– E o meu Anjo da
guarda como se chama? Onde está?
– Você ainda não tem
um Anjo só para ti. O de tua mamãe que sou eu cuida dela e cuida de ti. Depois,
quando você vier à luz do mundo, Deus mandará um Anjo que será teu enquanto
você viver e te levará ao céu quando você morrer.
– O dia em que eu
vier à luz do mundo! Exclamo com desilusão. – E quando vai ser isso?
– Você é muito
curioso! – Responde-me o Anjo de minha mãe.
Estou certo de que se
fosse o meu próprio Anjo da guarda não acharia ruim que eu lhe perguntasse
tantas coisas, porque me ensinar é seu ofício e não deve se cansar nem se negar
a me responder.
Fico humilhado e
triste e durmo cansadíssimo.
... continuará.
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