Nelson Rodrigues
Outra
figura brasileira consagrada pelos palavrões: - Gustavo Corção. Ninguém diria,
de maneira sucinta e inapelável: "É uma besta!" Bem que as esquerdas
gostariam que o fosse. Mas os seus piores inimigos sabem, e não teriam o
cinismo de negar, que Gustavo Corção é uma das inteligências mais sérias do
Brasil. Certa vez aconteceu-me uma passagem extraordinária com o grande
pensador católico.
Era
domingo. Voltava eu, não sei se de um clássico ou de uma pelada. Na saída do
Estádio Mário Filho, alguém me chama. Volto-me e dou de cara com um amigo, uma
flor das esquerdas, um doce radical como o Antônio Calado ou como o Hélio
Pelegrino. Eu e o amigo caminhamos no meio da torcida. Acontecera um empate e
ninguém gritava. A multidão tinha algo de tristeza fluvial no seu lerdo
escoamento. Então, o meu companheiro falou: - "Estou besta! Com a minha
cara no chão!" Pensei que ele, Fluminense como eu, estivesse desiludido com
o Tricolor (realmente, o meu clube não compra ninguém). Mas ele continuou: -
"Nunca pensei que o Corção..." Fez uma pausa e repetiu: - "Estou
besta! besta!"
Entre
parênteses, esse meu amigo tem, pelo Corção, um ódio comovente. Não lhe diz o
nome sem acrescentar... Acrescentar não. Não lhe diz o nome sem lhe antecipar
um palavrão. Chega ao nome pelo palavrão. E, súbito, falava do inimigo com uma
impostação diferente e, mesmo, inédita. Perguntei-lhe: - "Mas estás besta
por quê?"
Esquecia-me
de dizer que o meu amigo levava um radinho de pilha. Abriu uma pausa na
conversa para ouvir os comentários do João Saldanha e as gravações dos
"goals". Só depois do Saldanha é que voltamos ao Corção. Rádio
desligado, e o outro me perguntou, na sua impressão profunda: - "Leste o
artigo que ele escreveu? Que escreveu sobre o filho? Ó rapaz! O artigo do
Corção sobre o filho?"
Não era
um artigo do dia ou da véspera. Da sua publicação, transcorrera toda uma
semana. E, através dos sete longos dias, o artigo do Corção ficara badalando dentro
do meu amigo, como um sino inexorável. Membro da "festiva", freguês
do "Antonio's", havaiano de praia, relera o inimigo umas quinze
vezes. E a cada leitura a sua perplexidade era cada vez mais amarga. Súbito,
via um novo Corção, um Corção jamais suspeitado, um anti-Corção.
Vejam
vocês: - o grande prosador escrevera uma página sobre o filho, Rogério. Foi um
artigo de funda e dilacerada ternura. O nosso Rogério estava no Vietnam, como
um dos representantes do Brasil. Lá, as balas não escolhem, não discriminam, e
tanto estouram a cara de americano, como de brasileiro. E havia no artigo todo
um amor insuportável, e uma solidão desesperadora.
O
assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Durante anos, criara, e recriara, dia
após dia, uma imagem hedionda do "reacionário". Ele imaginava que, se
o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca
lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como
outro qualquer. Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina;
inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio do Corção. E aquele Corção
pai, simplesmente pai, e simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e
simplesmente órfão do próprio filho, contrariava toda uma imagem feita de
palavrões, de insultos, de baba.
Mas,
vejam toda a operação psicológica do meu amigo. A princípio não entendera uma
palavra, tão desconhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele Corção
vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só depois é que, limpando a figura
dos palavrões, dos ultrajes, das calúnias, é que o freguês do
"Antonio's" pode chegar à luz última e verdadeira do inimigo.
Por
fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio Mário Filho, era o membro da
festiva. A partir daquele momento, os seus palavrões soariam falsos aos
próprios ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso com a própria
comoção.
E,
então, chegou a minha vez. Não me lembro de tudo o que disse de Gustavo e de
Rogério. O esquerdista ouvia só, numa desesperada impotência para negar a
imagem que eu ia elaborando de Corçâo. Expliquei-lhe que tudo em Corção é amor;
poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino, para o amor. O que
parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das
grandes e generosas procelas.
Bate forte,
muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a
antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu
dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das
esquerdas: - o Corção tem um coração atormentado e puro de menino.
Quem o
sabe ler, percebe em todos os seus escritos o pai de Rogério, sempre o pai de
Rogério, querendo salvar milhões de filhos, eternamente.
___ Nelson RODRIGUES. O Óbvio Ululante, Livraria
Eldorado Editora, 1968, pp. 164-166.
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