"Queremos simplesmente dizer que entre os ‘sinais’ infalíveis da decadência e da morte de uma civilização encontra-se a desertização dos campos e a acumulação da gente na cidade; a passagem de uma riqueza modesta, mas sólida, que tem solidez inclusive moral e espiritual, à uma dourada miséria interior, coincidente não com o nascimento do homem novo, senão com os abortos em cadeia do homem envelhecido e decadente: massa de nascidos abortados e cúmulo de exibição da desordem, fonte de contaminação e de irreparável desequilíbrio social, tal como hoje se converteu a cidade, inobstante seus inegáveis atrativos. É necessário começar de novo a semear se se quer que nasçam homens-trigo e não homens-joio. Do campo e da solidão é a finura do sentir: o campo é ‘religioso’; do trigo toma a força do coração; da oliva, o azeite, produtor de luz, que espanta as trevas da alma. Por que, precisamente para que a civilização das máquinas e da cidade babélica não se autodestrua e para que conserve o que tem de válido, não se restitui à ‘campina divina’ de Virgílio sua dignidade e seu decoro, sua glória, seu silêncio e sua religiosidade?Religiosidade, sim; também religião. Nada de quanto se vive é mais válido, mais resistente nem mais ‘estático’ que o dinamismo que possui a árvore. A árvore tem raízes robustas, profundas, laboriosas: a árvore se arraiga; a árvore é ‘radical’ como a evidência que não se discute porque está além de toda discussão, porque além das raízes não se pode andar: a raiz é ‘princípio’; é radical no sentido de que dá raiz, disso que não se move e está sempre no mesmo lugar, irrompe a vida que se ramifica. A árvore está sempre no mesmo posto, a espera dos invernos e dos verões, das primaveras e dos outonos, da chuva e do sol, dos ventos e das neves: toda a natureza alimenta suas raízes que, por sua vez, fazem com que a natureza seja natureza. A árvore ensina que sem arraigar não se nasce e não se cresce, não operam as potencias vitais; ensina que quem se desarraiga não vive, morre; e se vai vivendo, é utópico, informe, traidor e, por isso, ‘ímpio’; é um saco vazio que se pode encher de tudo, inclusive de seu próprio vazio; é praça e não castelo, palheiro e não torre. Assim, o homem desarraigado é levado pelo vento como uma brisa de erva seca e, por falta de raízes, destina a curvar-se como as costas dos escravos e, depois, a arrastar-se, astúcia do escravo, como os repteis. A imobilidade da árvore é o símbolo das consciências sólidas precisamente porque têm raízes que lhes fixam e princípios que não se derrubam. Parece como se a árvore fosse o contrário da fé que move montanhas. E o é, seguramente; mas esta contraposição é necessária para a fé autêntica, que, como o pensamento, vive e se nutre de oposições. Sem raízes profundíssimas e vitais, como um penetrar até a profundidade da terra, como uma provocação audaciosa dirigida a alcançar a criação em sua origem imaculada; sem raízes que cravam como um mártir a sua fé, não nasce, não se alimenta a fé que move montanhas, porque as move apenas a fé arraigada, aquela que não se desarraiga e que, ao fim, precisamente quando se agarra à cruz, erradica a erva inútil. A árvore e os pássaros do céu e os lírios do campo, confiam na Providência. Não religião da natureza, senão aproximação religiosa da natureza, fonte que alimenta o espírito religioso, o amor à ordem e às coisas boas para o governo da ordem, que implica uma finalidade que a ultrapassa, a preenche: a faz perfeita".
"Ó Cidadela, minha morada, prometo salvar-te dos projetos de areia, e hei de bordar-te de clarins para tocarem na guerra contra os bárbaros". A. de Saint-Exupéry ("Cidadela", II)
sexta-feira, 21 de março de 2014
O CAMPO E AS RAÍZES DA CIVILIZAÇÃO
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